Estava hoje pela manhã levando o Miguelzinho para a creche, caminhando de mãos dadas sob o sol, quando ao nosso lado uma senhora surgiu tecendo elogios ao menino, comparando-o a um anjinho. Ao responder qual era o nome dele, essa senhora perguntou se ele fazia aniversário, pois é dia de São Miguel Arcanjo. Revelei que ele não era aniversariante, e confessei que não sabia da data do santo anjo. E assim ela começou a falar da hierarquia entre anjos e arcanjos, e da importância de Miguel, Gabriel e Rafael para o projeto divino. Como também conheço as passagens bíblicas, complementava a conversa.
(Pausa para falar da minha posição a respeito da religião: Não me considero um ateu, embora cada vez mais me seja difícil a crença no sistema cristão, que reproduz no além o modelo de sociedade terrena. Pois bem: o ateu (generalizando) desdenha a religião justificando-se no acaso e apegando-se à ciência. Ora, isso tende a transformar o Acaso em entidade demiúrgica, e o discurso científico em dogma. Ou seja, me é insuficiente. O fato de não me apegar à idéia da existência de deus não quer dizer que também duvide da sua existência. O mundo não se resumiria apenas ao que é visível, ou se uma forma geral, perceptível aos sentidos: haverá uma parte visível e outra invisível, uma concreta e passível de racionalização, e outra para qual predomina o mistério. E, sendo mistério, me é impossível seguir adiante e tentar revelá-lo. O inexplicável deve manter-se inexplicável, não como alienação, mas como forma de fugir das tentativas de explicar o que é inexplicável, sob o perigo de cair em representações frágeis, insinceras e manipuláveis. Se confuso? Confesso que estas não são posições estanques e de modo algum definitivas, e por vezes contraditórias. E lógico que a minha formação católica por vezes fala mais alto. Como fruto desses valores, que revelam quem sou, apagar a minha formação seria apagar parte de mim próprio e de minha história).
Assim, essa senhora falava da importância de Gabriel como arcanjo anunciador, Rafael como arcanjo responsável pela cura (sempre gostei do livro de Tobias) e Miguel como o arcanjo guerreiro. Assim, como é próprio do discurso místico-religioso, ela trazia esses significados em torno do homônimo de meu filho para o seu futuro. Por mais que se acredite ou não nessas abordagens, deve-se considerar sobretudo que elas revelam um tal grau de simpatia, que é capaz de transmitir afeição gratuita a desconhecidos. Gosto disso.
Até que, próximo à esquina em que seguiríamos caminhos diferentes (a encruzilhada, sempre significativa) ela reiterou que o nome do Miguel não era gratuito. E a ele estaria previsto o papel de instrumento de paz nesse mundo no qual se está perdendo valores. Nesse momento minha resposta foi o mais sincera possível; não que não eu tivesse sido sincero antes, mas a minha busca maior sobre perguntas do que sobre respostas me encabula diante de tamanhas convicções religiosas. Respondi-lhe que sim, que ele haveria de ser um instrumento de paz, como cada um de nós é: todos nós temos responsabilidades sobre o mundo que moldamos. Ela concordou. E eu deixei marcada com isso a minha posição política.