literatura, política, cultura e comportamento.
seja em santa maria, em alegrete, no rio de janeiro, em osório ou em liechtenstein.
na verdade, tanto faz.

27 de março de 2010

Quando a pólvora do fósforo explode um grampeador de mercúrio

Um amigo meu dizia – a Taise narrando – que o grampeador não deveria se chamar “grampeador”. Deveria chamar-se “grampeadouro”. Como “bebedouro”, que é o aparelho em que se bebe. Grampeador não deveria ser a pessoa que está grampeando?

Esse foi um dos tópicos de uma conversa entre eu e a Taise, sábado pela manhã cedo, sobre o significado das palavras, enquanto tomávamos chimarrão.

Foi a Taise que puxou assunto a respeito do mercúrio, o “negocinho vermelho” que as mães passavam no machucado das crianças, que é uma solução iodada utilizada para evitar infecção. Ela questionou-se a respeito do nome do remédio, que se refere a um metal pesado, extremamente tóxico. E que, obviamente, não está na solução do referido medicamento, à base de iodo, um não-metal. Pensemos que as pessoas estão mais propícias a lembrar do mercúrio como remédio e não como elemento químico: será que dá agora para imaginar as pessoas passando mercúrio na pele...?

Caso contrário – argumentei – é o do fósforo. O fósforo não tem fósforo. Na verdade, está certo se falamos em “caixinha de fósforo”, pois o elemento fósforo está presente na lateral da caixinha, e não no palito. O palito possui pólvora (mistura de nitratos, enxofre e carvão), mas, ao falarmos em caixinha de fósforo, somos levados a imaginar uma caixa que contenha fósforo: e assim, o palito de pólvora ganha o nome de “fósforo”! Porém – como a Taise argumentou – imaginemos as pessoas receosas pela sensação de violência que a ideia de ter pólvora em casa propicia...

PS: A sugestão de título é da própria Taise, que corresponde à maneira de levar as suas inquietações.

15 de março de 2010

Ato 1

Quatro paredes. Com o piso e o teto, um cubo de concreto. Nesse cubo de concreto atravesso dias do resto da minha existência. Nesse cubo eu durmo, eu acordo, eu como, eu estudo. Em outros cubos iguais a esse eu almoço, eu trabalho, faço amor e pago contas. Vivo num universo de cubos de concreto em constante queda e reconstrução, nos quais as pessoas – nós – eliminam lentamente cada feixe de vida que nos resta até a nossa promessa de morte. Eis a lembrança da nossa morte: certeza única que nos dá uma segurança de futuro (ou falta dele). Através da lembrança que estamos condenados a morrer, podemos nos impulsionar a fazer algo mais do que dormir, comer e cagar. Ou usufruir esse dom ou bênção que é dormir, comer e cagar: sinais de vida. E, se possível, usufruir também de outros dons que a existência permite que nos aventuremos, seja através do prazer ou da dor. Mas para além do interior do cubo de concreto. Ou será possível encontrar a famigerada felicidade dentro de um cubo com cama, geladeira e fogão? A luz elétrica e a água encanada podem vir a ser os sinais de que há um mundo exterior que nos espera mas que nos ameaça pela incerteza. O telefone, a televisão, o rádio e a internet são sinais mais nítidos dessa presença externa: que há mais pessoas lá fora, dormindo, comendo, cagando e disputando poder e dinheiro. Um jornal afirma em sua versão digital que os Estados Unidos ampliam para 20 mil o número total de soldados atuando no Haiti, depois do terremoto de 12 de janeiro (2010). Mídias alternativas noticiam que Cuba mandou 400 jovens médicos para atuarem no Haiti. E a gordinha do youtube manda seu apoio ao povo azul de Pandora. Guns n’Roses cancelam um show por causa da chuva, Lady Gaga tem seu novo clip divulgado na rede e metade dos franceses estão se lixando para quem estará na composição do seu parlamento. Na segurança do meu cubo de concreto estou apático à autorização que o governo de Israel deu para que se construam novas colônias judaicas em áreas árabes, que dificulta as negociações de paz no Oriente Médio. Ou, ainda que eu esteja acompanhando essas negociações de paz, estou seguro pelo cubo e pela distância. Fico chocado com a matança de golfinhos no Japão e com o desmatamento da Amazônia, ao passo que a Europa já devastou a sua floresta. Os governos de países desenvolvidos fazem jogo duplo no que se refere aos países do terceiro mundo: ao mesmo tempo em que financiam ONGs para direitos humanos e proteção ambiental, financiam empresas para explorarem mão-de-obra barata e recursos naturais. Até que ponto esses são problemas que devo considerar como meus? A crise econômica grega pode me afetar? E se fosse aqui? Na segurança do meu cubo consigo me manter alheio às questões de soberania nacional, segurança alimentar, engarrafamentos e reforma agrária. Consigo? Nos Estados Unidos, a população economicamente ativa na agricultura é de apenas 2 a 3%, e Beckram tem rompimento total do tendão de Aquiles, o que impossibilita sua ida à Copa do Mundo. Ignoro a existência de micróbios, suponho a existência de extraterrestres e não tenho certeza sobre a existência de Deus, mas adoro sorvete, cheeseburger e pizza. Afinal, o que não mata na hora, mata aos poucos. Guerras, desastres naturais e pressão alta, coisas tão distante da minha realidade. Até que ponto? Até que ponto a morte e destruição no Chile não vão garantir o aquecimento da economia em outras partes do globo, incluindo talvez o meu emprego? Ou as guerras entre cristãos e muçulmanos na Nigéria? E as guerras no Iraque e no Afeganistão, que garantem o suprimento de combustível para empresas norte-americanas, mas que no Brasil reclamamos do preço da gasolina ao passo que a temos a Petrobrás como uma das maiores empresas petrolíferas no mundo, sem necessidade de conflito armado para extração de petróleo e gás? E se eu separo o lixo em casa ou evito comer carne, estou fazendo a minha parte para a Pax Mundi? O exterior me ameaça. Fecho as janelas e ligo o ar condicionado. Tenho colchão, calçado, vaso sanitário e computador: e quem não tem? Quantas pessoas hoje no mundo não têm o que tenho agora ao meu alcance? E é problema meu? O que eu poderia fazer? Eu posso fazer algo? Eu quero me expor à ameaça externa e fazer mesmo alguma coisa?