literatura, política, cultura e comportamento.
seja em santa maria, em alegrete, no rio de janeiro, em osório ou em liechtenstein.
na verdade, tanto faz.

27 de novembro de 2009

Itinerante

Amigos. Esse mês de novembro pouco pude colaborar no blog, e dezembro dificilmente terá uma atualização efetiva. Não que falte assunto, longe disso. Mas esse é mais um daqueles momentos decisivos em que temos que rever prioridades. Em breve saio daqui de casa, do aconchego do lar, e vou com uma mochila nas costas, muitas idéias na cabeça e sem uma câmera na mão, buscar opções para o ano que vem. Por um lado, com muita saudade da Taise e do Miguel; por outro, na expectativa dos amigos a rever e a conhecer. Tentarei, na medida do possível, estar acessando o e-mail e o blog. O telefone ainda não sei se o levarei. Se por acaso houver quem possa me conseguir pouso e carona, agradeço. Abraços...

6 de novembro de 2009

"Quem disse que a literatura não incomoda mais?" (3)

"Caim e Abel", c. 1620, atribuí­do a Simon Vouet e Pietro Novelli. Óleo sobre tela - 198 x 147 cm. Galleria Nazionale d'Arte Antica, Roma.

Feliz vai também caim, já a sonhar com um almoço no campo, entre verduras, fugidios carreirinhos de água e passarinhos a sinfonizar nas ramagens. À mão direita do caminho, além, vê-se uma fila de árvores de bom porte que promete a melhor das sombras e das sestas. Para lá tocou caim o jumento. O sítio parecia ter sido inventado de propósito para refrigério de viajantes fatigados e respectivas bestas de carga. Paralela às árvores havia uma fileira de arbustos tapando o carreiro estreito que subia em direcção ao teso da colina. Aliviado do peso dos alforges, o jumento tinha-se entregado às delícias da erva fresca e de alguma rústica flor tresmalhada, sabores estes que jamais lhe tinham passado pela goela. Caim escolheu tranquilamente a ementa e ali mesmo comeu, sentado no chão, rodeado de inocentes pássaros que debicavam as migalhas, enquanto as recordações dos bons momentos vividos nos braços de lilith voltavam a aquecer-lhe o sangue. Já as pálpebras tinham começado a pesar-lhe quando uma voz juvenil, de rapaz, o fez sobressaltar, Ó pai, chamou o moço, e logo uma outra voz, de adulto de certa idade, perguntou, Que queres tu, isaac, Levamos aqui o fogo e a lenha, mas onde está a vítima para o sacrifício, e o pai respondeu, O senhor há-de prover, o senhor há-de encontrar a vítima para o sacrifício. E continuaram a subir a encosta. Ora, enquanto sobem e não sobem, convém saber como isto começou para comprovar uma vez mais que o senhor não é pessoa em quem se possa confiar.
Há uns três dias, não mais tarde, tinha ele dito a abraão, pai do rapazito que carrega às costas o molho de lenha, Leva contigo o teu único filho, isaac, a quem tanto queres, vai à região do monte mória e oferece-o em sacrifício a mim sobre um dos montes que eu te indicar. O leitor leu bem, o senhor ordenou a abraão que lhe sacrificasse o próprio filho, com a maior simplicidade o fez, como quem pede um copo de água quando tem sede, o que signifi ca que era costume seu, e muito arraigado. O lógico, o natural, o simplesmente humano seria que abraão tivesse mandado o senhor à merda, mas não foi assim. Na manhã seguinte, o desnaturado pai levantou-se cedo para pôr os arreios no burro, preparou a lenha para o fogo do sacrifício e pôs-se a caminho para o lugar que o senhor lhe indicara, levando consigo dois criados e o seu filho isaac. No terceiro dia da viagem, abraão viu ao longe o lugar referido. Disse então aos criados, Fiquem aqui com o burro que eu vou até lá adiante com o menino, para adorarmos o senhor e depois voltamos para junto de vocês. Quer dizer, além de tão filho da puta como o senhor, abraão era um refinado mentiroso, pronto a enganar qualquer um com a sua língua bífida, que, neste caso, segundo o dicionário privado do narrador desta história, significa traiçoeira, pérfida, aleivosa, desleal e outras lindezas semelhantes.
Chegando assim ao lugar de que o senhor lhe tinha falado, abraão construiu um altar e acomodou a lenha por cima dele. Depois atou o filho e colocou-o no altar, deitado sobre a lenha. Acto contínuo, empunhou a faca para sacrificar o pobre rapaz e já se dispunha a cortar-lhe a garganta quando sentiu que alguém lhe segurava o braço, ao mesmo tempo que uma voz gritava, Que vai você fazer, velho malvado, matar o seu próprio filho, queimá-lo, é outra vez a mesma história, começa-se por um cordeiro e acaba-se por assassinar aquele a quem mais se deveria amar, Foi o senhor que o ordenou, foi o senhor que o ordenou, debatia-se abraão, Cale-se, ou quem o mata aqui sou eu, desate já o rapaz, ajoelhe e peça-lhe perdão, Quem é você, Sou caim, sou o anjo que salvou a vida a isaac. Não, não era certo, caim não é nenhum anjo, anjo é este que acabou de pousar com um grande ruído de asas e que começou a declamar como um actor que tivesse ouvido finalmente a sua deixa, Não levantes a mão contra o menino, não lhe faças nenhum mal, pois já vejo que és obediente ao senhor, disposto, por amor dele, a não poupar nem sequer o teu filho único, Chegas tarde, disse caim, se isaac não está morto foi porque eu o impedi.
O anjo fez cara de contrição, Sinto muito ter chegado atrasado, mas a culpa não foi minha, quando vinha para cá surgiu-me um problema mecânico na asa direita, não sincronizava com a esquerda, o resultado foram contínuas mudanças de rumo que me desorientavam, na verdade vi-me em papos-de-aranha para chegar aqui, ainda por cima não me tinham explicado bem qual destes montes era o lugar do sacrifício, se cá cheguei foi por um milagre do senhor, Tarde, disse caim, Vale mais tarde que nunca, respondeu o anjo com prosápia, como se tivesse acabado de enunciar uma verdade primeira, Enganas-te, nunca não é o contrário de tarde, o contrário de tarde é demasiado tarde, respondeu-lhe caim. O anjo resmungou, Mais um racionalista, e, como ainda não tinha terminado a missão de que havia sido encarregado, despejou o resto do recado, Eis o que mandou dizer o senhor, Já que foste capaz de fazer isto e não poupaste o teu próprio filho, juro pelo meu bom nome que te hei-de abençoar e hei-de dar-te uma descendência tão numerosa como as estrelas do céu ou como as areias da praia e eles hão-de tomar posse das cidades dos seus inimigos, e mais, através dos teus descendentes se hão-de sentir abençoados todos os povos do mundo, porque tu obedeceste à minha ordem, palavra do senhor. Estas, para quem não o saiba ou finja ignorá-lo, são as contabilidades duplas do senhor, disse caim, onde uma ganhou, a outra não perdeu, fora isso não compreendo como irão ser abençoados todos os povos do mundo só porque abraão obedeceu a uma ordem estúpida, A isso chamamos nós no céu obediência devida, disse o anjo.
Coxeando da asa direita, com um mau sabor de boca pelo fracasso da sua missão, a celestial criatura foi-se embora, abraão e o filho também já lá vão a caminho do lugar onde os esperam os criados, e agora, enquanto caim ajeita os alforges no lombo do jumento, imaginemos um diálogo entre o frustrado verdugo e a vítima salva in extremis. Perguntou isaac, Pai, que mal te fiz eu para teres querido matar-me, a mim que sou o teu único filho, Mal não me fizeste, isaac, Então por que quiseste cortar-me a garganta como se eu fosse um borrego, perguntou

TRATA-SE de um trecho divulgado pela Folha On-line de Caim, de José Saramago, recém lançado. Segundo informações dadas pelo próprio jornal, o livro questiona a tradição e valores bíblicos ao se por a narrar o período do Antigo Testamento que vai da criação ao dilúvio. Anos depois de publicar o “Evangelho segundo Jesus Cristo” e provocar indignações da ICAR, o prêmio Nobel de Literatura volta a abordar temas bíblicos e declara estar mudando mudar de postura: "As insolências reacionárias da Igreja Católica precisam ser combatidas com a insolência da inteligência viva, do bom senso, da palavra responsável. Não podemos permitir que a verdade seja ofendida todos os dias por supostos representantes de Deus na Terra, os quais, na verdade, só tem interesse no poder", afirmou. Na ocasião da publicação do “Evangelho”, Sousa Lara, na época subsecretário de estado da Cultura de Portugal, considerou o livro ofensivo para as tradições religiosas de seu povo e o fez retirar da lista para o prêmio europeu de Literatura. Eis o que o levou, talvez, a auto exilar-se de Portugal, buscando refúgio (o sossego para seu espírito literário), na ilha espanhola de Lanzarote (NPDiário.com).

Saramago tem dado afirmações um tanto polêmicas sobre a bíblia:
- "A bíblia é um manual de maus costumes, um catálogo de crueldade e do pior da natureza humana"
- "Sem a bíblia, um livro que teve muita influência em nossa cultura e até em nossa maneira de ser, os seres humanos seriam provavelmente melhores", completou.
- O romancista denunciou "um deus cruel, invejoso e insuportável, que existe apenas em nossas mentes", e afirmou que sua obra não causará problemas com a igreja católica "porque os católicos não lêem a bíblia".

Na mesma esteira, o escritor português dirige-se diretamente a Bento XVI: "Que Ratzinger tenha a coragem de invocar Deus para reforçar seu neomedievalismo universal, um Deus que ele jamais viu, com o qual nunca se sentou para tomar um café, mostra apenas o [seu] absoluto cinismo intelectual". Ainda segundo Saramago, a igreja não se importa com o destino das almas e sempre buscou o controle de seus corpos.
A ICAR se manifestou: o porta-voz da Conferência Episcopal Portuguesa, Manuel Marujão, chamou o livro de "operação publicitária": “Um escritor da dimensão de José Saramago deveria tomar um caminho mais sério. Pode fazer críticas, mas entrar em um gênero de ofensas não fica bem a ninguém, e muito menos a um Prêmio Nobel". A questão é determinar onde está esse limite entre a crítica e a ofensa para a ICAR, e qual a sua auto-avaliação quanto às “críticas”.

"Admito que o livro pode irritar os judeus, mas pouco me importa", afirma Saramago, ao supor que sua obra não causará problemas com a Igreja Católica "porque os católicos não lêem a Bíblia". Nesse sentido, manifesta-se também a comunidade judaica: "o mundo judeu não vai se escandalizar com os escritos de Saramago nem de ninguém", e "Saramago desconhece a Bíblia e sua exegese. Faz leituras superficiais da Bíblia", disse o rabino Elieze du Martino, representante da comunidade judaica de Lisboa. Talvez seja essa a melhor reação às provocações de Saramago, de quase indiferença.

A pior – mais exdrúxula – talvez tenha sido a reação no Parlamento Europeu. O deputado da bancada social-democrata Mário David, médico de formação, disse ter vergonha de Saramago e pediu a renúncia pelo escritor de sua cidadania portuguesa: "José Saramago, há uns anos, fez a ameaça de renunciar à cidadania portuguesa. Na altura, pensei quão ignóbil era esta atitude. Hoje, peço-lhe que a concretize... E depressa! Tenho vergonha de o ter como compatriota! Ou julga que, a coberto da liberdade de expressão, se lhe aceitam todas as imbecilidades e impropérios?". Ainda acusando Saramago de ter se deslumbrado com o Nobel, o deputado afirma que esse prêmio "não lhe confere a autoridade para vilipendiar povos e confissões religiosas, valores que certamente desconhece mas que definem as pessoas de bom carácter." Certamente para o nobre deputado, ateus devem ser automaticamente pessoas más. Sobre esse assunto, tem um ótimo vídeo do ateu Dráuzio Varella (médico da Globo), que dispensa qualquer devaneio meu nesse sentido:



SYLVIA COLOMBO faz aqui uma leitura no mínimo convidativa: José Saramago usa Caim para atacar Deus

Aqui, bate-rebate:
"Saramago, já chega" -
blog de Mário David
"Carta aberta ao eurodeputado Mário David" - Helder Sanchez, pelo Movimento ateísta português
"Mário David, já chega" - Blog Costa Rochosa
"Para fechar sobre Saramago" - blog de Mário David

Eis mais um trecho divulgado pela Folha, em que Saramago descreve a criação de Adão e Eva pelo Senhor, o desenvolvimento das "incomodidades do ser", a evolução dos hormônios do homem e da mulher e a geração dos seus filhos.


Quando o Senhor, também conhecido como Deus, se apercebeu de que a Adão e Eva, perfeitos em tudo o que apresentavam à vista, não lhes saía uma palavra da boca nem emitiam ao menos um simples som primário que fosse, teve de ficar irritado consigo mesmo, uma vez que não havia mais ninguém no jardim do Éden a quem pudesse responsabilizar pela gravíssima falta, quando os outros animais, produtos, todos eles, tal como os dois humanos, do faça-se divino, uns por meio de mugidos e rugidos, outros por roncos, chilreios, assobios e cacarejos, desfrutavam já de voz própria. Num acesso de ira, surpreendente em quem tudo poderia ter solucionado com outro rápido fiat, correu para o casal e, um após outro, sem contemplações, sem meias-medidas, enfiou-lhes a língua pela garganta abaixo. Dos escritos em que, ao longo dos tempos, vieram sendo consignados um pouco ao acaso os acontecimentos destas remotas épocas, quer de possível certificação canônica futura ou fruto de imaginações apócrifas e irremediavelmente heréticas, não se aclara a dúvida sobre que língua terá sido aquela, se o músculo flexível e úmido que se mexe e remexe na cavidade bucal e às vezes fora dela, ou a fala, também chamada idioma, de que o Senhor lamentavelmente se havia esquecido e que ignoramos qual fosse, uma vez que dela não ficou o menor vestígio, nem ao menos um coração gravado na casca de uma árvore com uma legenda sentimental, qualquer coisa no gênero amo-te, Eva. Como uma coisa, em princípio, não deveria ir sem a outra, é provável que um outro objetivo do violento empurrão dado pelo Senhor às mudas línguas dos seus rebentos fosse pô-las em contato com os mais profundos interiores do ser corporal, as chamadas incomodidades do ser, para que, no porvir, já com algum conhecimento de causa, pudessem falar da sua escura e labiríntica confusão a cuja janela, a boca, já começavam elas a assomar. Tudo pode ser. Evidentemente, por um escrúpulo de bom artífice que só lhe ficava bem, além de compensar com a devida humildade a anterior negligência, o Senhor quis comprovar que o seu erro havia sido corrigido, e assim perguntou a Adão, Tu, como te chamas, e o homem respondeu, Sou Adão, teu primogênito, Senhor. Depois, o criador virou-se para a mulher, E tu, como te chamas tu, Sou Eva, Senhor, a primeira dama, respondeu ela desnecessariamente, uma vez que não havia outra. Deu-se o Senhor por satisfeito, despediu-se com um paternal Até logo, e foi à sua vida. Então, pela primeira vez, Adão disse para Eva, Vamos para a cama.
Set, o filho terceiro da família, só virá ao mundo cento e trinta anos depois, não porque a gravidez materna precisasse de tanto tempo para rematar a fabricação de um novo descendente, mas porque as gônadas do pai e da mãe, os testículos e o útero respectivamente, haviam tardado mais de um século a amadurecer e a desenvolver suficiente potência generativa. Há que dizer aos apressados que o fiat foi uma vez e nunca mais, que um homem e uma mulher não são máquinas de encher chouriços, os hormônios são coisa muito complicada, não se produzem assim do pé para a mão, não se encontram nas farmácias nem nos supermercados, há que dar tempo ao tempo. Antes de Set tinham vindo ao mundo, com escassa diferença de tempo entre eles, primeiro Caim e depois Abel. O que não pode ser deixado sem imediata referência é o profundo aborrecimento que foram tantos anos sem vizinhos, sem distrações, sem uma criança gatinhando entre a cozinha e o salão, sem outras visitas que as do Senhor, e mesmo essas pouquíssimas e breves, espaçadas por longos períodos de ausência, dez, quinze, vinte, cinquenta anos, imaginamos que pouco haverá faltado para que os solitários ocupantes do paraíso terrestre se vissem a si mesmos como uns pobres órfãos abandonados na floresta do universo, ainda que não tivessem sido capazes de explicar o que fosse isso de órfãos e abandonos. É verdade que dia sim, dia não, e este não com altíssima frequência também sim, Adão dizia a Eva, Vamos para a cama, mas a rotina conjugal, agravada, no caso destes dois, pela nula variedade nas posturas por falta de experiência, já então se demonstrou tão destrutiva como uma invasão de carunchos a roer a trave da casa. Por fora, salvo alguns pozinhos que vão escorrendo aqui e ali de minúsculos orifícios, o atentado mal se percebe, mas lá por dentro a procissão é outra, não tardará muito que venha por aí abaixo o que tão firme havia parecido. Em situações como esta, há quem defenda que o nascimento de um filho pode ter efeitos reanimadores, senão da libido, que é obra de químicas muito mais complexas que aprender a mudar uma fralda, ao menos dos sentimentos, o que, reconheça-se, já não é pequeno ganho. Quanto ao Senhor e às suas esporádicas visitas, a primeira foi para ver se Adão e Eva haviam tido problemas com a instalação doméstica, a segunda para saber se tinham beneficiado alguma coisa da experiência da vida campestre e a terceira para avisar que tão cedo não esperava voltar, pois tinha de fazer a ronda pelos outros paraísos existentes no espaço celeste.

Informações e excertos foram retirados majoritariamente do jornal Folha de S.Paulo.

Poemas para serem relidos - Manuel Bandeira

Ainda hoje escrevi para um amigo palavras que me perturbaram. Eu dizia-lhe: "são nesses momentos de fragilidade do homem que nos perguntamos o que é a vida e qual o seu objetivo. Pela fragilidade do homem nos colocamos a pensar a nossa própria vida, como homens que somos, de trajetos incertos mas de destino único". Ainda acrescentei: "pessoas, lugares e momentos constituem a nossa história e nos fazem ser o que somos hoje: quando esses elementos que nos constituem faltam, é como se partes de nós mesmos tivessem se perdido para o sempre".
Na tentativa de expurgação de meus demônios interiores, resolvi postar esses poemas de Bandeira.
Por não querer vincular o amigo ao assunto, evitei referi-lo.
E a foto acima é de Carlos Orellana.

Profundamente

Quando ontem adormeci
Na noite de São João
Havia alegria e rumor
Estrondos de bombas luzes de Bengala
Vozes, cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas.

No meio da noite despertei
Não ouvi mais vozes nem risos
Apenas balões
Passavam, errantes

Silenciosamente
Apenas de vez em quando
O ruído de um bonde
Cortava o silêncio
Como um túnel.
Onde estavam os que há pouco
Dançavam
Cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas?

— Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
Dormindo
Profundamente.

*

Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci

Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão todos eles?

— Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.


Momento Num Café


Quando o enterro passou
Os homens que se achavam no café
Tiraram o chapéu maquinalmente
Saudavam o morto distraídos
Estavam todos voltados para a vida
Absortos na vida
Confiantes na vida.

Um no entanto se descobriu num gesto largo e demorado
Olhando o esquife longamente
Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade
Que a vida é traição
E saudava a matéria que passava
Liberta para sempre da alma extinta

(BANDEIRA, Manuel. Libertinagem & Estrela da manhã. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000).