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15 de abril de 2009

Efabulações a respeito do segundo volume da Poética de Aristóteles


Uma cena que acho engraçada pertence ao filme “Eu, eu mesmo e Irene”. Em determinado momento do filme, a personagem é tomada por um acesso de fúria ao ver um carro ser estacionado na vaga reservada para deficientes. No que o motorista entra rapidamente na vaga e, logo em seguida, no estabelecimento comercial, a nossa personagem resolve agir violentamente contra o carro. Eis que, a tomada seguinte mostra o motorista devolvendo o carro a um senhor, digamos “todo emparafusado”, ou seja, o dono do carro. Outra tomada, o carro está completamente demolido, e nosso protagonista urina sobre os destroços do carro. Vejamos: o nosso riso não se dá necessariamente em função de personagem A ou B. Fora de contexto, haveria um cara nervoso, um cara apressado e um deficiente físico; nenhum deles motiva-nos a rir em função de suas características.

O riso se manifesta através de um “reconhecimento”: o foco no protagonista, o carro que estaciona, o enfoque à vaga para deficientes, a fúria do protagonista (em que recuperamos o enredo do filme), e a violência dirigida à destruição do carro são ações que preparam a tomada do deficiente saindo da porta acompanhado do motorista. É esse o momento do riso, pois reconhecemos a peripécia: uma desmedida decorre do impulso do herói que age movido pelo senso de justiça, tornando-se patético pelo “acaso”. Na verdade, ao recorrer a essa cena cômica, me move imaginar os conceitos que Aristóteles teria levantado na segunda parte da Poética.

De fato, ao final da parte VI, o filósofo grego promete retomar na sequencia questões sobre a comédia, o que não se concretiza. Embora a busca pelo volume II da Poética tenha suscitado múltiplas hipóteses (e em O nome da Rosa, de Umberto Eco, teríamos talvez a mais famosa), não há a prova de que Aristóteles teria escrito tal tratado. O que não invalida, de forma alguma, que tracemos hipóteses da suposta segunda parte da Poética. Quaisquer que sejam as incursões no campo hipotético acerca do volume dois da Poética de Aristóteles, acredito que não se deve distanciar-se das postulações à tragédia e à epopéia, bem como curtas referências à própria comédia que há no texto aristotélico que temos em mãos.

As partes qualitativas da tragédia de Aristóteles, em ordem de importância, são a) a fábula, b) as personagens, e c) as falas, que correspondem ao objeto da mímese. Na mesma sequencia, d) as idéias e e) os cantos, correspondente aos meios da mímese. E, por fim, f) a encenação, modo da mímese. Assim posto, o elemento central da tragédia é a fábula, ou talvez melhor, o enredo, a disposição dos fatos. “Mais importante: a disposição das ações. Tragédia é a imitação de ações da vida, da felicidade e da desventura. A finalidade da tragédia é uma ação, não uma qualidade. A felicidade e a desventura estão na ação. O caráter determina como as personagens são, mas é de acordo com a ação que elas são felizes ou não”. Ou seja, a tragédia não se exprimiria em função da construção das personagens, suas características, mas em virtude de suas ações.

Se adotássemos o mesmo princípio para a comédia? Ou seja, a valorização do riso estaria no desenrolar das ações, e não nas personagens. Como assim? Bom, apesar da história poder fornecer inúmeros exemplos, a nossa era do cinema e televisão é rica o suficiente para buscarmos esses exemplos. Afinal, no mass media não nos confrontamos seguidamente com programas de humor que exploram estereótipos que não se enquadram em padrões pré-determinados de comportamento e beleza? Os gordos comilões, os novos ricos, as velhas taradas, os homossexuais, os homens e mulheres feios e burros, ou a mulher bonita mas idiota, e mais tantos outros que nos bombardeiam; tratam-se de arquétipos que não exigem uma fábula necessariamente, visto que os apelos escatológicos, sexuais e alimentares exploram exageros sempre ligados ao baixo ventre. Desse jeito, a própria personagem já é motivo de um riso fácil; fácil, como soltar um pum para um público.

Quando comecei fazendo referência a determinada cena de “Eu, eu mesmo e Irene”, imaginei um exemplo em que a disposição dos fatos sobrepusesse a importância das personagens. Um outro exemplo? “Adeus, Lênin”, outra comédia divertida e que não explora estereótipos alheios aos padrões sociais.

Aristóteles diferencia a tragédia da comédia através do objeto de imitação: homens melhores que nós são objetos comuns às tragédias, ao passo que homens piores que nós são objetos da comédia. Ou seja, a ética assume um papel preponderante na separação entre um e outro gênero. Ora, será mesmo que não poderíamos imaginar que Aristóteles inverteria a ordem de importância no caso da comédia, privilegiando assim as personagens? Os vícios que caracterizariam as personagens como inferiores a nós não estariam presentes em “comédias de enredo”? Levanto esse questionamento pensando justamente nos exemplos gregos, referentes à Comédia Antiga, cujo expoente temos cá sendo Aristófanes, e à Comédia Nova, cujo representante seria Menandro. Ao passo que o primeiro abusa dos vícios e exageros em suas personagens, no segundo parece termos personagens mais “reais”, mais palpáveis. É como se pudéssemos assinalar, ainda que correndo o risco do equívoco, que o primeiro privilegiaria mais a comicidade das personagens que o segundo. Por esse viés, a intriga seria o enfoque de Menandro (não imagino que seja por acaso que O Misantropo muito me lembrou as peças de Martins Pena). Será mesmo possível essa classificação?

Vícios e virtudes separariam os extremos da representação entre os homens: aos virtuosos, sua representação na tragédia; aos débeis, na comédia. No entanto, nesse entremeio, estamos nós, seres reais, tão virtuosos quanto débeis. Ao passo que a tragédia se apóie por vezes em nomes de pessoas que existiram, partindo-se da premissa de que “o que aconteceu é crível”, me parece que a comédia não recorreria tão seguidamente às pessoas reais, a não ser em casos de sátira – embora a sátira me sugira uma referência mais “presente” do que “histórica”. As personagens trágicas têm uma superioridade e, por seguinte, uma gravidade maior, por terem responsabilidades sobre cidades e povos: geralmente, os heróis trágicos são nobres, cujas ações e decisões recaem e propagam-se sobre muitas pessoas. De forma contrária, em geral, as personagens da comédia tendem a ser leves de responsabilidades, cujas ações e decisões recaem e propagam-se sobre elas mesmas ou sobre poucas pessoas.

Retorno à pergunta já feita antes: Será mesmo que não poderíamos imaginar que Aristóteles inverteria a ordem de importância no caso da comédia, privilegiando assim as personagens? Os vícios que caracterizariam as personagens como inferiores a nós não estariam presentes em “comédias de enredo”? Apesar de concordar que seja possível verificar padrões de intensidade quanto ao uso de vulgaridades constitutivas à construção de personagens para a comédia, prefiro supor que Aristóteles continuaria a valorizar a fábula nesse caso. As personagens de “comédias de enredo”, por mais que estejam próximas de nós (homens reais tidos como medida do padrão ético regido pela “aurea mediocritas”), ainda são vítimas da sua própria desmedida, seus vícios e fraquezas. A catarse trágica encontraria seu correspondente na gargalhada? E rir, na mais saudável das hipóteses, não seria decorrente de reconhecer nos exageros, vícios e tolices das personagens as nossas próprias fraquezas?

Um comentário:

Sabina Insustentável disse...

Cruzes!

Publica esse trem em revista científica!

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