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na verdade, tanto faz.

13 de janeiro de 2011

igual a um sobre o nourrau II

Ao ler livros – literatura, de comum acordo conceitual – nos deparamos com o produto da tragicidade inerente à atividade de escrever. Ou seja, a atividade de leitura faz com que nos satisfaçamos com o sacrifício de alguém. Fora necessário um ato de amor para conosco – leitores – que alguém se lançou à renúncia da sua própria vida para que vivêssemos e vivenciássemos outras tantas, possíveis e imaginárias.
Não me refiro, embora não pudesse deixar de referi-lo, à tese da morte do autor, de Roland Barthes. Em seu famoso artigo, parece-me que Barthes está interessado em estabelecer diferenciações das categorias de autor e narrador. Neste caso, enfatiza-se o poder demiúrgico daquele que cria não apenas um universo, mas que cria a sua própria voz pela qual um mundo será criado. Ao passo que o narrador pode ser uma testemunha onisciente e onipresente da existência de quaisquer personagens, o autor é um simples humano como nós, fadado ao “legado da sua miséria” (como nos diria d’além-vida o nosso Brás Cubas). O autor morre para dar vazão ao narrador, cuja voz transpassa os limites do tempo e pode chegar até nós. Retomando, portanto, não me oporei aqui à morte barthesiana do autor. Ou antes, focarei as minhas atenções ao sujeito empírico, de carne e osso, relegado pelo seu ímpeto ao apagamento e à morte.
O sujeito escritor, no ato de escrever, isola-se do mundo. Vê-se tomado pela sua própria solidão inerente à existência; no entanto, ao passo que negamos nossa solidão no dia-a-dia, essa solidão essencial que torna nossa experiência de vida única e intransmissível, o escritor vive-a. Ele se joga no abismo do seu próprio vazio, de onde busca marcar, a partir do traço negro no papel, as cicatrizes da sua experiência, de quem viveu a sua própria solidão. A única testemunha dessa entrega do escritor às incertezas do seu próprio abismo é a sua pena: seja o lápis, a caneta, a máquina ou o teclado, cada qual com a sua peculiaridade, ainda são a sua pena. Aquele que escreve, escreve por necessidade: sua pena é a sua pena a ser cumprida, o seu destino inevitável, a sua prisão que haverá de libertá-lo. Então, o escritor sincero explicita, no corpo de seu texto, essa solidão através das interrogações que faz a sua pena. Porém, de um modo geral, à moda de Balzac, o escritor escamoteia a sua solidão e dissimula a sua entrega. O bom contador de histórias, como diriam alguns, é aquele que permite que a história pareça que se conta a si própria, sem marcas e intervenções do narrador. “Pareça”: o fingimento seria fruto da insegurança?
Os poetas são – e continuam sendo, por essa voz que não se apaga – acusados na República por Platão, de serem simples imitadores das aparências da virtude e de quaisquer assuntos sobre os quais versem. Por estar a três graus distantes da Verdade, diz Platão que “o imitador não tem nenhum conhecimento válido do que imita” e, portanto, ao poeta não haveria respaldo para falar sobre coisas das quais não tem domínio. Visto falar de muitas coisas, em nenhuma o poeta teria excelente conhecimento para delas ter propriedade para falar. Dessa forma, os poetas são considerados por Platão apenas como criadores de sombras, presos às ilusões da aparência e muito distantes da essência das coisas, alheios à realidade.
No entanto – e bem sabemos hoje – os textos carregam marcas indissociáveis daquele que os escreve, ainda que seu autor desejasse apagar-se. O escritor renuncia-se a si mesmo no ato da escrita: renuncia à individualidade, dissolve-se no papel em nome da sua própria escrita; o criador doa-se deliberadamente para privilegiar a criatura. O texto torna-se vivo e perene, e abre-se a quem quiser lê-lo, bastando pegá-lo. O autor há de sobreviver através de seus textos, como um pai que sobrevive através dos filhos.
À cabeça me vem a imagem dos cestos de livros: imagem comum, dentre os apaixonados pela literatura, que não se privam de adquiri-los mais e mais, como objetos de um vício. Ao ater-me às tais cestas – e imagino que aconteça com todos os meus confrades – passamo-os um a um, cada livro, em busca ou de algum título ou autor específico, ou nos deixamos conduzir ao reconhecer qualquer coisa que nos familiarize (um cânone, ainda que particular?). Por ora vejo-me como um leitor ingrato para com aqueles que se dedicam à escrita: e os outros livros? Aqueles que não me chamam a atenção? Aqueles dos quais jamais ouvi falar do autor? Que ignoro por completo seu conteúdo? Ou que desprezo pela capa, ou pela editora? Se, por um lado, Mário de Andrade já constatara que “todo autor acredita na valia do que escreve”, pelo outro lado reajo com certa ingratidão. Sim, ingrato sim, pois como leitor, sou seletivo. Sempre. Ainda que eu queira contornar minha ingratidão e me lance à aventura de quaisquer desses livros, ainda não lerei outros. Sou um leitor, o eterno ingrato.
Ao passo que seleciono um título na expectativa do deleite, dou um voto de confiança ao texto e seu autor. Mas, e quanto ao autor, confiará ele no seu leitor? Baudelaire busca a cumplicidade: “Hypocrite lecteur, - mon semblable, - mon frère!” Porém, outros buscarão? Ao considerar a escrita como um gesto de amor e doação de si, o escritor pode buscar reconhecimento em virtude disso. Como aquelas pessoas que se dedicam às causas sociais não por compaixão, mas por autopromoção. Dessa forma, longe de fazer referência ao leitor, como Baudelaire fez, não estaria o sujeito autoral colocando-se em um patamar superior aos outros? Seria portanto a negação da literatura: o querer dizer algo, ou a autopromoção do escritor de carne e osso. Pois a essência da literatura, se se pudesse desvendá-la, seria essa o silêncio. O silêncio absoluto.
Trágico, pois se trata de uma imolação voluntária. Uma doação das próprias palavras, e portanto, da própria vida. O escritor diz desdizendo-se, surge apagando-se, gritando suas memórias do subsolo ao mesmo tempo em que se enterra em sua solidão. Afinal, o que a literatura poderia dizer? Não é ela própria um fim em si mesma? Não é a literatura uma intransitividade inerente a si própria? Seria muita pretensão querer dizer algo, pela lógica de Platão. E talvez se possa reconhecer, nesse ponto, uma das ambições da literatura moderna: ao buscar uma possível realidade por trás das palavras, a literatura volta-se para a própria literatura. Isso não significa fechar os olhos ao redor, ignorar a realidade: mas pode ser uma busca de cumplicidade para com o leitor, um voto de confiança, a partir do momento em que ambos sabem: o silêncio também significa.

(julho de 2010)

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