literatura, política, cultura e comportamento.
seja em santa maria, em alegrete, no rio de janeiro, em osório ou em liechtenstein.
na verdade, tanto faz.

19 de janeiro de 2011

Reescrita e colagem


Ontem, no ônibus, aconteceu algo inusitado: um bichinho subiu na minha mão. Era um desses cascudinhos amarelos que ficam em volta das lâmpadas. Meu primeiro impulso ao sentir seus passos foi mirar e jogá-lo para longe, como se fosse uma bolinha de gude ou coisa parecida. Mas, freei a ação segundos antes de fazê-lo e temi pelo destino do bichinho: estávamos enclausurados em um ônibus, uma caixinha de metal – como outras tantas caixinhas de metal pelas quais as pessoas habituaram-se a se locomover desde o último século – a uns 70 km/h com 46 poltronas, respirando o mesmo ar de outras 45 pessoas, o mesmo ar que saía quente pela ventoinha e retornava frio, diminuindo a umidade do ar e provocando ressecamento das vias aéreas, o que provoca irritação no nariz e na garganta, e proliferando os fungos, ácaros e bactérias por todo o ambiente, como se fossem as argolinhas de um aquaplay. (Ora, quem não se lembra o que é um “aquaplay” que procure na Wikipédia: “Aquaplay é um brinquedo que foi popular na década de 1980. Ele consiste de um pequeno recipiente, em plástico transparente, enchido com água e vedado. Um ou dois botões na base, de acordo com o modelo, acionava um mecanismo, a fim de realizar a tarefa do jogo. As tarefas variavam de acordo com o modelo. Por exemplo, um golfinho que deveria encaixar todas as argolas em um espeto; ou ainda, uma bola de basquetebol que deveria passar dentro da cesta. Este artigo sobre Jogos é um esboço. Você pode ajudar a Wikipédia expandindo-o”). O fato é que estávamos fechados no ônibus, o cascudinho amarelo e eu, seu cúmplice, sem saber como ele tinha entrado ali, e sem saber como ele iria sair. Eu não tinha condições de jogá-lo pela janela, aliviando minha consciência por tê-lo devolvido à natureza, ainda que sabendo que ele estaria no asfalto sujeito a qualquer pneu desavisado. E, se eu o jogasse pelo ônibus, como se fosse uma bolinha de gude ou coisa parecida, ele iria correr sérios riscos de vida, como ser pisado sem querer por alguém que pusesse fim àquela forma de existência. Ou, vir a parar na cabeça de alguém que não tivesse a complacência por um insetinho como ele e o esmagasse. Alguém o esmagaria como tantos que por aí são violentados, esmagados, privados de sua dignidade e condenados ao esquecimento e ao descaso das pessoas. A não ser que apareçam na TV, em algum programa que explore de forma patética o drama de algumas famílias entre comerciais de carros, xampus, sabonetes, sabões em pó, cosméticos, calçados, cursinhos de inglês, bancos, lojas de roupas e programas do próprio canal. Será que somos mais atingidos pelas tragédias e pelos engarrafamentos que aparecem na televisão e pelo câncer dos atores da novela e pelos cantores sertanejos do que pela realidade dos jovens do nosso bairro que procuram nas drogas e na violência uma forma de se verem como seres viventes, já que de outra forma eles não conseguem se fazer ouvidos pelo resto da sociedade? É mais fácil as pessoas ignorarem que há grandes bolsões de pobreza em volta das cidades, discriminarem e criminalizarem as pessoas que não conseguem espaço digno entre as pessoas “ditas de bem”? É bonito dizer que “não se deve dar o peixe, mas ensinar a pescar”: o problema é que, ao mesmo tempo em que se está aprendendo a pescar, a pessoa precisa ter o seu peixe para comer! Isso é um problema deles – lá –, do governo, ou é um problema meu e de responsabilidade minha também? Não há civilização humana que tenha se formado sem religião. E qual a importância e o papel das religiões, senão promover o amor, o respeito e o senso de coletividade? Não quero parecer autossuficiente – pois sei que não sou – mas para ajudar as pessoas, compreender o próximo, moldar o meu caráter e ser uma pessoa razoavelmente boa eu não preciso de religião. Talvez haja quem precise, e eu daria todo o apoio nesse caso. Certa vez eu vi aquelas senhoras que estavam trabalhando na igreja: estavam lá porque realmente têm fé e rezam para que seu deus implacável tenha piedade de nós todos, filhos dele? Ou elas estão fazendo um “sacrifício” indo à missa para acumular bônus que lhas garantam um lugarzinho especial no reino dos céus? Ou, simplesmente, estão seguindo conveniências sociais sem um mínimo de profundidade espiritual? Uma vez li no fórum de uma comunidade do Orkut uma frase de Gandhi onde ele diz que acredita profundamente na verdade de todas as religiões e na importância das mesmas para os povos aos quais foi revelada. Acho isso maravilhoso porque é o princípio da tolerância. Independente da minha espiritualidade, acredito mesmo que todas elas têm um papel fundamental na sociedade. O problema é o que cada homem, cada um de nós faz com elas. Já é batido "refletir" sobre a degradação e perda de valores na "sociedade contemporânea". Mas se eu olho o mundo ao redor e comparo com o passado, eu chego mesmo a essa conclusão? Afinal, afirmações a respeito de "perda" e "degradação" implicam que haja no passado um momento em que esses valores tenham sido respeitados e hoje eles estariam invertidos. Desde quando os valores ocidentais judaico-cristãos que nós assumimos como nossos foram realmente os corretos? E para quem esses valores foram "corretos"? E o suposto respeito a esses bons valores tornava os homens e a sociedade melhor? Será que atribuir essa "inversão" de valores à ascensão do capitalismo não é apenas simplificar as coisas também? Será que hoje não somos apenas menos hipócritas, a partir do momento em que as relações pessoais estão organizadas em torno do acúmulo de dinheiro, essa coisa virtual que se transformou na única medida de valor? E a capacidade de amar dos seres humanos, sua generosidade, inteligência, afeto, doçura, desejo? Tudo isso ficou subordinado ao poder aquisitivo do indivíduo. E não estou nem falando de consumismo, porque isso já é outra coisa. Falo de algo mais básico como sobrevivência. Numa sala de bate-papo, eu conversava com uma amiga eslovaca sobre a experiência comunista do século passado. Ela me escreveu que, para o pai dela, o fracasso do comunismo é o fracasso da humanidade. E ele tem razão. O comunismo parte do princípio de que, se a gente consegue algo, vai dividir com os demais. Mas as pessoas não pensam assim: se a gente consegue algo, aquilo vira posse, é só meu. Dividir o pão ou dar migalhas? Quem realmente divide o pão? Se tiver pouco pega pra si, se tiver muito vende. E, se quer ajudar alguém, digite a tag de uma determinada empresa no tuíter! Se quer se manifestar reivindicando atenção das autoridades, eleger um candidato ou fazer a revolução, promova as tags até aparecerem nos trends topics do tuíter. E depois eu posso continuar levando a minha vida normalmente, pois já exerci a minha cidadania em 140 caracteres, sendo levado pela opinião pública para repetir uma ideia qualquer motivada por pensamentos rápidos e não testados. É um absurdo o aumento do salário dos deputados? É sim, porque tem um monte de gente que passa fome ou que ganha menos. Mas, e se não tivermos o aumento, isso muda? E se colocarmos especificamente esse aumento numa verba específica para a educação, saúde, cultura, transportes, isso vai de fato mudar a realidade? Como eu, daqui do meu cubo de concreto, posso mudar a realidade? Eu posso fazer algo sozinho? Então, como nós mudamos a realidade? Resolvi, portanto, que ia manter o cascudinho amarelo caminhando entre meus dedos. O que não é fácil, porque esse tipo de inseto nunca pára, e é sua mão que precisa movimentar-se para que ele continue, enfim, caminhando em círculos sem saber, até quando eu o deixaria em uma árvore, assim que acabasse aquela viagem. E se eu também sou como aquele insetinho que se deixa levar andando em círculos sem o saber? Acho que me identifico com ele, por isso tenho essa ansiedade em protegê-lo. Cascudinho hipócrita, meu semelhante, meu irmão! Protegê-lo passou a ser meu objetivo naquele instante, e a mulher que se sentou ao meu lado algumas paradas depois deve ter estranhado muito minha relação com meu novo amiginho casca-dura. Era uma ação meio autista: um cara sentado mexendo a mão enquanto um inseto caminha por ela. Mas isso não importava naquele momento, o que importava era o objetivo maior: deixá-lo a salvo quando descesse do ônibus. E foi o que fiz, por mais difícil que fosse se levantar com o ônibus em movimento e segurar-se sem esmagar o bichinho que estava perto da minha palma, ao mesmo tempo em que ia ajeitando minha mochila e pedindo licença à moça aquela que estava do meu lado. Desci, coloquei-o numa árvore. Missão cumprida. Então, enquanto ia para casa, começou a viagem: e se depois de tanto cuidado, ainda sentado no meu lugar no ônibus, eu perdesse o bichinho de vista? Sei lá, se ele entrasse pela manga da minha camiseta, como eu o tiraria de lá sem esmagá-lo, ou o esmagasse por instinto? “Como todo o ser humano”, o cascudinho também precisaria ser protegido e cuidado com respeito e compaixão. Ao invés disso tudo ter acontecido com um cascudinho, isso poderia ter sido com uma joaninha. Seria mais bonitinho, mas também seria mais apelativo. E ninguém tem pena de um simples cascudinho amarelo da luz.

Texto plagiado a pedido, recortado de muitas vozes e colado aqui, com cola bastão.
Agradecimentos especiais a quem quer que tenha colaborado na sua costura, conscientemente ou não.

Um comentário:

Igor de Fato disse...

Tá se puxando hem índio velho?

Parabéns.

A vitória do capitalismo não teve nada a ver com economia. Foi ideológica.

Pode parecer estranho eu falar isso. Mas vejamos.

Dividir o pão ou ter liberdade? Ter liberdade, óbvio! Simples assim, foi isso que venceu. Não deu nem 140 caracteres...

A humanidade segue buscando seu caminho. A luta não acabou, assumiu outras formas, e o povo se organiza independentemente do Partido Comunista estar pronto para liderá-lo...

O povo dá seu jeito. Não é a toa que o povo inventou o Lula.

Tudo é troca. Quem ensina também aprende. Foi o igrejeiro Paulo Freire quem lançou essa ideia.

A igreja teológica da libertação no entanto vai até determinado lugar. Inventaram o MST tudo bem, mas na zona urbana a Igreja não conseguiu. Vai ver tem que ser comunista pra entender o favelado. Hip Hop cristão só se for evangélico. Vida loka Jesus.

Lenin sabia das coisas. Prefiro acreditar que os trotskistas pouco entendem de Trotski. Mas o fato é que temos que inventar nosso jeito. Com a nossa cara, nossa ginga, nossa dissimulação, sensualidade, contradição, complexidade, paixão, amor, com nossa lágrima, sangue, DNA. Do nosso ventre. Nosso chão.

Nosso socialismo.

Não tem forma, mas tem alguns princípios. Todo mundo precisa ser livre. Liberdade compartilhada, não essa ideologia estadunidense. Condições de igualdade para vicejar a riqueza da diferença.

Vai dar certo. Embora eu saiba que não vou ver o homem que quero ser, vou lutar até fechar os olhos em definitivo.

Nunca sozinho.

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