Ir ou não ir? O calor insuportável de Santa Maria tinha sido interrompido por uma chuva forte ao final da tarde. Deveríamos ir, eu e Miguel, para aquela chuva, brincar na calçada? O primeiro impulso – como “adulto” – é o de não ir. Como assim, sair para tomar banho de chuva? Não que me importe com o que os outros pudessem pensar: de fato, não me importo com isso. Ou melhor, não quero me importar, esforço-me para não me importar com o que os outros pensem de mim, das minhas coisas, do que eu faço ou deixo de fazer. A dúvida em ir não durou mais do que cinco segundos, mas é como se o tempo tivesse parado a fim de que eu pudesse refletir sobre se deveria ir ou não ir. A prudência recomendaria que não fôssemos, se considerarmos todas as recomendações de nossos médicos, noticiários, mães, avós, policiais e benzedeiras. Tomar banho de chuva pode dar um resfriado, talvez até uma tuberculose! Um "resbalo" e uma queda de mau jeito poderiam trazer problemas sérios! Ora, como os seres humanos são frágeis! Já é um milagre a minha existência, se pensarmos em toda a trajetória da carga genética que trago em mim, que constitui o que sou, e que veio dos meus pais e dos meus avós, de Adão e de Eva, dos primórdios da humanidade, dos ancestrais primatas e do primeiro ser vivo: um ser unicelular, com membrana, material genético e um monte de composto orgânico que formava o seu metabolismo. Meu ancestral não morreu – não ao menos antes de passar a carga genética que nos une – nem na Segunda Guerra Mundial, nem na Guerra dos 100 anos, nem durante a Peste Negra ou durante a caça às Bruxas, nem no incêndio de Roma por Nero ou na destruição de Sodoma e Gomorra por Deus, nem foi pisoteado por um mamute, nem comido por um dinossauro ou morrido junto com eles pela queda de um gigante meteoro. Se a minha carga genética sobreviveu às Eras Glaciais e ao Dilúvio, qual o risco em tomar o banho de chuva? O que eu sei é que minha mãe sempre me diz que faz bem à saúde tomar um copo de água todo dia logo após acordar. Mas li, outro dia, na internet, que bom mesmo é tomar uma colher de azeite em jejum. Afinal, devemos tomar água ou azeite ao acordar para manter a boa saúde? Ou não tomar nada e ir logo escovar os dentes? Espreguiçar-se, estalar os dedos, bocejar, coluna ereta, remédios, lentes de contato, sabonete, fio dental, creme para o cabelo, desodorante, xixi, cocô. Cotonetes: usá-los ou não usá-los? Que dilema mortal! Sempre usei cotonetes, mas de uma hora para outra viraram os vilões dos ouvidos. Menos mal que as recentes pesquisas nos Estados Unidos liberaram os ovos! Agora podemos comer ovos todos os dias sem nos preocuparmos com o colesterol! Ou não, já que não há nada mais impreciso, superficial e inconstante do que as pesquisas idiotas recém divulgadas nos EUA, e que são repassadas para nós – pessoas comuns – pelo jornal Hoje e pelas páginas de emails. E então, tomar água ou azeite de cozinha? Pode ser óleo de soja, ou tem que ser de girassol ou de oliva? Não tomar nada? Misturar os dois? Ah, não, água e óleo não se misturam. Uma solução é às segundas, quartas e sextas tomar água ao acordar, e às terças, quintas e sábados tomar óleo: no domingo eu vou dormir até o meio-dia, e não vou me preocupar com isso. Além do mais, tenho que me matricular na natação, na ioga, no pilates, no aikido, no inglês, na academia... Porém, devo procurar a sensação de paz e de felicidade pagando por ela? Conta, boleto, promoção, cheque, cartão de crédito, dívida no banco, cartão telefônico, sedex, empréstimo, parcela a partir de 24 vezes sem juros, imposto de renda, matrícula, taxa disso, taxa daquilo, desconto, pedágio, mensalidade, folheto promocional, propaganda, telemarketing, contracheque, SPC, SERASA, IPTU, IPVA, ICMS, consumismo, imperialismo, anarquismo, nacionalismo, barbarismo, catecismo, futurismo, dadaísmo, capitalismo, eufemismo, bairrismo, provincianismo, chauvinismo: eis a vida do Homo sapiens sapiens moderno, pósmoderno, contemporâneo, de vanguarda, sedentário para agir e para pensar sua vida, constante e chata. Talvez eu caminhe, talvez eu corra. Talvez eu faça aeróbica na frente do computador, através de vídeos do youtube. E para que fazer tudo isso? Todas essas atividades de uma rotina saudável vão me trazer a felicidade? Talvez eu libere adrenalina, que me dará sensação de bem estar. Mas a adrenalina é o mesmo hormônio que as pessoas liberam quando têm a sensação de medo, para estimular a luta ou a fuga. Devo lutar ou fugir? Devo procurar a felicidade no Google e respondendo a todos os emails, scraps e powerpoints repassados ou procurar os meus familiares e os meus amigos para abraçá-los e dizer a eles o quanto eu gosto deles e o quanto eu sinto saudades deles? Eu deveria também era procurar fazer novos amigos, aproveitando a oportunidade de oferecer um sorriso a cada estranho, vendo-o como um amigo em potencial. O que será que passa pela cabeça do outro, daquele vizinho, daquele sujeito que passou por mim na calçada? Como as crianças têm facilidade em fazer novas amizades! É possível ver o outro como um amigo e não como um concorrente, um inimigo ou simplesmente com indiferença? Ainda devo preocupar-me com o que os outros pensam? Quem não vai, quem não se joga, quem não tenta aproveitar essas pequenas oportunidades de buscar a felicidade, faz o quê? Espera o que da vida, tentando julgar os outros da proteção de seu próprio cubo de concreto? Eu e o Miguel tomamos o banho de chuva, e, de mãos dadas, para que ele não caísse, corríamos pela calçada, colocávamos nossas cabeças em baixo da calha com água fria, pulávamos nas poças e éramos tomados por uma sensação de completude. Um momento único entre pai e filho: eu acompanhava e protegia o meu filho, o meu descendente, aquele que carrega os meus genes para além da minha existência, ao mesmo tempo em que partilhávamos daquela alegria na chuva, daquela felicidade, fator importante para que se tenha uma vida saudável e longa. Tomar banho de chuva, dessa forma, converte-se em um ato político, um signo de liberdade e de felicidade.
Vídeo: Letra e voz de Igor de Fato (2011)
Um comentário:
É aquele tipo de coincidência que emociona.
Essa música demorou nove anos pra ficar pronta. A primeira parte eu escrevi há nove anos atrás. Fala de partida, de dor pela ausência. Solidão.
A segunda parte supera a primeira. O blues que se foi volta a tocar. O dia já raiou e caiu a chuva. E o eu lírico que antes não se sentia pertencente ao coletivo que dança como se a festa não tivesse fim, agora é parte desse coletivo. A chuva, a rua, são elementos de união dos corpos que dançam felizes por estar vivos. Apesar de tudo. O blues volta a tocar sim.
Como diria o poeta: "Tomar banho de chuva, dessa forma, converte-se em um ato político, um signo de liberdade e de felicidade".
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