literatura, política, cultura e comportamento.
seja em santa maria, em alegrete, no rio de janeiro, em osório ou em liechtenstein.
na verdade, tanto faz.

30 de junho de 2010

Uma leitura de O caminhão, de Marguerite Duras

Minha mãe está lendo O caminhão, tradução de Le camion, de Marguerite Duras, livro com que trabalhei durante meu projeto de pesquisa no mestrado. Durante a tarde, entre uma conversa pela internet de muitos temas, ela toca no assunto e puxa conversa...


Mãe: Estou quase terminando O Caminhão...

Blog do Berned: E o que está achando?

Mãe: Meio complicado... Tem que entrar na história para entender o que ela pretende... 
Parece escondido...
Tem que aguçar a imaginação...

Blog do Berned: Sim, é a ideia: exigir do leitor uma participação ativa na leitura.

Mãe: Yes! Disseste melhor!
Tem que se colocar em cada personagem... tipo, viver junto a história.
Estar no caminhão.
Imaginar a paisagem...
E o que se passa na cabeça da mulher...
É tudo invenção o que ela fala?
Ela saiu de um sanatório como fala o Gérard Depardieu...
Ou é uma solitária que procura viver uma história pedindo carona?

Blog do Berned: Eis o tempo hipotético na organização da narrativa!

Mãe: Ou seja: uma incógnita!

Blog do Berned: Não é uma incógnita, pois não há resolução para isso. 
Ou seja, as possibilidades são infinitas! 

Mãe: Hummm... não tinha pensado nisso!
Cada leitor imagina o que quiser e pronto.

Blog do Berned: Exatamente...

Mãe: Será que no filme não fica meio... sem graça?
Pois, no final, é a montagem de um filme...

Blog do Berned: Talvez, não vi o filme.
Mas acho que o efeito é semelhante... Pois a atenção não estaria na imagem, apesar dela estar bem ali em frente! Mas possivelmente no som, como um convite para fechar os olhos e imaginar...

Mãe: Hummmm...
Mas já fiquei imaginando como seria o filme...

Blog do Berned: Exatamente, é esse o efeito!

Mãe: Imaginar e não assistir?

Blog do Berned: Sim!

Mãe: E também seria sem ação...
Ela por vezes cantarola uma canção...

Blog do Berned: E que canção é?
Imagina alguma para o filme que se passa durante a tua leitura?

Mãe: Ainda não tentei...
Mas num filme ficaria meio parado. Pois ele, G.D., só responde por monossílabos...
Ficaria um diálogo unilateral?

Blog do Berned: Imagina que ela está no papel de quem conta uma história;
e ele, no nosso papel, daquele que ouve a história e orienta o nosso papel, a participar, a interrogar(-se) e a imaginar a história.

Mãe: Então, é uma sala com uma mesa e somente duas personagens contando uma história que o público só imagina....

Blog do Berned: O paradoxo é ir ao cinema ver isso, quando as narrativas contadas por alguém ao pé de fogueiras são milenares...
O homem sente a necessidade de ouvir e contar histórias...

Mãe: Mas e esse filme existe?

Blog do Berned: Sim. 
E se passa em uma sala, com uma mesa e somente duas personagens contando uma história que o público só imagina.

Mãe: E não foi aquele que ela não gostou de como fizeram?
Não... esse foi O Amante!

Blog do Berned: O caminhão foi ela mesma quem fez.

Mãe: E ela gostou?

Blog do Berned: Sim... ela fez como queria que fosse feito.

Mãe: Hummm... Intrigante e curioso.
Ou desperta a curiosidade para assisti-lo.


Para conhecer mais da boleia desse caminhão, procure o livro aqui.

29 de junho de 2010

Patriotismo de copa do mundo

Foto: Fifa.com, via Flickr/Y!

Muita gente critica esse fenômeno em terras tupiniquins, o nosso patriotismo que se alterna entre copas do mundo de futebol e olimpíadas de verão. Tais críticos, suponho, têm em vista um patriotismo constante ao longo do ano, e que teria seu apogeu no sete de setembro, no quinze de novembro, e talvez no 22 de abril. Seu modelo é, supostamente, as comemorações do 4 de julho nos Estados Unidos e do 14 de julho na França.

Se considerarmos o motivo de comemoração em relação ao julho estadunidense e ao francês, verificaremos que remete a momentos profundamente significativos, de rompimento com uma ordem vigente e surgimento de outra ordem, com intenso apoio e participação popular. É destacado o orgulho nacional de se ter participado de uma grande vitória para o seu país, a sua nação e o seu território.

E no Brasil, por que é diferente? De fato, com os acontecimentos que precederam e atingiram o seu ponto alto no sete de setembro em São Paulo, a independência do Brasil representou uma independência de fato? Ora, as elites mantiveram-se as mesmas, o sistema escravagista e monárquico permaneceu o mesmo, e a dependência política de Portugal, econômica da Inglaterra e cultural da França mantiveram o Brasil agindo como uma colônia. A própria proclamação da república, com mais de cinquenta anos de atraso, apenas exprimiu o esgotamento de um sistema em si mesmo, não modificando substancialmente em nada a política e a economia nacional.

Em termos políticos e econômicos, as grandes mudanças iniciaram com o governo de Getúlio Vargas. O caudilho gaúcho, que garantiu inúmeros avanços nas áreas trabalhista e industrial, ainda representava os interesses de sua classe social, embora confrontasse o eixo São Paulo – Minas Gerais. Sua Revolução de 30, que dá início aos 15 anos ininterruptos de presidência, é sim um marco de resistência e luta, ainda que da incipiente classe burguesa.

Quando o processo político do Brasil apontava para mudanças consistentes e significativas pelas eleições democráticas, sobretudo após os anos JK, de efervescência cultural e de grandes construções, os militares, apoiados pela UDN, reprimem os indicativos da mudança por vir e garantem no poder a mesma elite de sempre. Resumindo: na história do Brasil não há vitória de contestadores e revolucionários. As mudanças são tênues, vindas de regimes democráticos ou pelo próprio peso da história.

Que orgulho nacional pode advir dessa história oficial?

De fato, no Rio Grande do Sul, o orgulho gaúcho é muito mais intenso do que o de ser brasileiro, em que a Revolução Farroupilha é o grande motivo. E ainda, aos que possam condenar essa comemoração como uma batalha de interesses de oligarcas, no mesmo estado temos a figura de Leonel Brizola como referência pela Legalidade, a última grande resistência do poder civil ao golpe militar que a precederia. Poderemos admitir que efeito semelhante há em Minas Gerais em relação à Inconfidência e em Pernambuco em relação à Confederação do Equador.

O que torna o nosso país motivo de orgulho? Que ações humanas tornam o nosso especial e destacado em relação a outros? O que nos coloca na ponta de grandes países? Até pouco tempo, que atividade cumpria essa necessidade de auto-afirmação, senão o esporte, e mais especificamente o futebol?

Possivelmente apenas no século XXI começamos a abandonar o complexo de vira-latas e ter orgulho de nosso país, pela via democrática e coalizão política em torno de um projeto nacional de desenvolvimento e distribuição de renda. Apesar de sua imprensa e parte da população não terem assimilado que a mudança veio pra ficar, cada um de nós tem responsabilidade pela construção do país e grande nação que todos queremos que seja. Ter orgulho é ter amor-próprio, e amor-próprio se conquista pela satisfação em colaborar.

20 de abril de 2010

A Veja vende o seu pato

"Eu me preparei a vida toda para ser presidente", diz o presidenciável tucano José Serra na capa do caduco folhetim semanal. E não vai ser, assim como o Maluf (outro que está há tempos esperando a sua vez...).

Leia aqui, no Conversa Afiada, a denúncia dessa que é mais uma peça apelativa pró-Serra.

Sem falar no fotoshop forçado, em que o dito candidato aparece sem as olheiras habituais e as salientes gengivas que lhe são naturais:

Veja mais "fotoshopagens" equivocadas, aqui.

1 de abril de 2010

Contra ou a favor ao aborto? Vai pensando aí...


Do Portal Vermelho:


O debate foi proposto... Vamos repensando nossas posições, pois, mais cedo ou mais tarde, esta questão, entre outras tão delicadas que vêm sendo proteladas, vai ter que ser encarada e discutida... São questões sobretudo de ética e de saúde pública para as quais não podemos simplesmente ignorar por mais e mais tempo!

Sem falar que eu adorei a composição do vídeo. Muito bem pensado, muito bem feito...

A iniciativa é do pessoal da Ipas, a partir da página www.vaipensandoai.com.br

27 de março de 2010

Quando a pólvora do fósforo explode um grampeador de mercúrio

Um amigo meu dizia – a Taise narrando – que o grampeador não deveria se chamar “grampeador”. Deveria chamar-se “grampeadouro”. Como “bebedouro”, que é o aparelho em que se bebe. Grampeador não deveria ser a pessoa que está grampeando?

Esse foi um dos tópicos de uma conversa entre eu e a Taise, sábado pela manhã cedo, sobre o significado das palavras, enquanto tomávamos chimarrão.

Foi a Taise que puxou assunto a respeito do mercúrio, o “negocinho vermelho” que as mães passavam no machucado das crianças, que é uma solução iodada utilizada para evitar infecção. Ela questionou-se a respeito do nome do remédio, que se refere a um metal pesado, extremamente tóxico. E que, obviamente, não está na solução do referido medicamento, à base de iodo, um não-metal. Pensemos que as pessoas estão mais propícias a lembrar do mercúrio como remédio e não como elemento químico: será que dá agora para imaginar as pessoas passando mercúrio na pele...?

Caso contrário – argumentei – é o do fósforo. O fósforo não tem fósforo. Na verdade, está certo se falamos em “caixinha de fósforo”, pois o elemento fósforo está presente na lateral da caixinha, e não no palito. O palito possui pólvora (mistura de nitratos, enxofre e carvão), mas, ao falarmos em caixinha de fósforo, somos levados a imaginar uma caixa que contenha fósforo: e assim, o palito de pólvora ganha o nome de “fósforo”! Porém – como a Taise argumentou – imaginemos as pessoas receosas pela sensação de violência que a ideia de ter pólvora em casa propicia...

PS: A sugestão de título é da própria Taise, que corresponde à maneira de levar as suas inquietações.

15 de março de 2010

Ato 1

Quatro paredes. Com o piso e o teto, um cubo de concreto. Nesse cubo de concreto atravesso dias do resto da minha existência. Nesse cubo eu durmo, eu acordo, eu como, eu estudo. Em outros cubos iguais a esse eu almoço, eu trabalho, faço amor e pago contas. Vivo num universo de cubos de concreto em constante queda e reconstrução, nos quais as pessoas – nós – eliminam lentamente cada feixe de vida que nos resta até a nossa promessa de morte. Eis a lembrança da nossa morte: certeza única que nos dá uma segurança de futuro (ou falta dele). Através da lembrança que estamos condenados a morrer, podemos nos impulsionar a fazer algo mais do que dormir, comer e cagar. Ou usufruir esse dom ou bênção que é dormir, comer e cagar: sinais de vida. E, se possível, usufruir também de outros dons que a existência permite que nos aventuremos, seja através do prazer ou da dor. Mas para além do interior do cubo de concreto. Ou será possível encontrar a famigerada felicidade dentro de um cubo com cama, geladeira e fogão? A luz elétrica e a água encanada podem vir a ser os sinais de que há um mundo exterior que nos espera mas que nos ameaça pela incerteza. O telefone, a televisão, o rádio e a internet são sinais mais nítidos dessa presença externa: que há mais pessoas lá fora, dormindo, comendo, cagando e disputando poder e dinheiro. Um jornal afirma em sua versão digital que os Estados Unidos ampliam para 20 mil o número total de soldados atuando no Haiti, depois do terremoto de 12 de janeiro (2010). Mídias alternativas noticiam que Cuba mandou 400 jovens médicos para atuarem no Haiti. E a gordinha do youtube manda seu apoio ao povo azul de Pandora. Guns n’Roses cancelam um show por causa da chuva, Lady Gaga tem seu novo clip divulgado na rede e metade dos franceses estão se lixando para quem estará na composição do seu parlamento. Na segurança do meu cubo de concreto estou apático à autorização que o governo de Israel deu para que se construam novas colônias judaicas em áreas árabes, que dificulta as negociações de paz no Oriente Médio. Ou, ainda que eu esteja acompanhando essas negociações de paz, estou seguro pelo cubo e pela distância. Fico chocado com a matança de golfinhos no Japão e com o desmatamento da Amazônia, ao passo que a Europa já devastou a sua floresta. Os governos de países desenvolvidos fazem jogo duplo no que se refere aos países do terceiro mundo: ao mesmo tempo em que financiam ONGs para direitos humanos e proteção ambiental, financiam empresas para explorarem mão-de-obra barata e recursos naturais. Até que ponto esses são problemas que devo considerar como meus? A crise econômica grega pode me afetar? E se fosse aqui? Na segurança do meu cubo consigo me manter alheio às questões de soberania nacional, segurança alimentar, engarrafamentos e reforma agrária. Consigo? Nos Estados Unidos, a população economicamente ativa na agricultura é de apenas 2 a 3%, e Beckram tem rompimento total do tendão de Aquiles, o que impossibilita sua ida à Copa do Mundo. Ignoro a existência de micróbios, suponho a existência de extraterrestres e não tenho certeza sobre a existência de Deus, mas adoro sorvete, cheeseburger e pizza. Afinal, o que não mata na hora, mata aos poucos. Guerras, desastres naturais e pressão alta, coisas tão distante da minha realidade. Até que ponto? Até que ponto a morte e destruição no Chile não vão garantir o aquecimento da economia em outras partes do globo, incluindo talvez o meu emprego? Ou as guerras entre cristãos e muçulmanos na Nigéria? E as guerras no Iraque e no Afeganistão, que garantem o suprimento de combustível para empresas norte-americanas, mas que no Brasil reclamamos do preço da gasolina ao passo que a temos a Petrobrás como uma das maiores empresas petrolíferas no mundo, sem necessidade de conflito armado para extração de petróleo e gás? E se eu separo o lixo em casa ou evito comer carne, estou fazendo a minha parte para a Pax Mundi? O exterior me ameaça. Fecho as janelas e ligo o ar condicionado. Tenho colchão, calçado, vaso sanitário e computador: e quem não tem? Quantas pessoas hoje no mundo não têm o que tenho agora ao meu alcance? E é problema meu? O que eu poderia fazer? Eu posso fazer algo? Eu quero me expor à ameaça externa e fazer mesmo alguma coisa?

6 de fevereiro de 2010

sem título, sem data

Esse poeminha realmente é das antigas. Não está datado, e inclusive está sem título. Mas eu lembrava dele e, limpando a casa, achei-o. A "Tereza" é, obviamente, uma referência a poemas do Manuel Bandeira. Talvez merecesse retoques, mas por ora fica como algum dia escrevi-o:


Tereza, eu te vi uma vez, te beijei, te abracei, conversei contigo, ri, falamos de literatura, falamos em francês, me falaste de ti, falei de mim, debochamo-nos, separamo-nos numa festa, não ouvi teu nome, e para poder sonhar contigo inventei um nome pra ti.


Bonitinho, não?

28 de janeiro de 2010

Deu no Vermelho: Osório cria núcleo da UJS

Copiado de: http://www.vermelho.org.br/rs/noticia.php?id_noticia=123089&id_secao=113 . 24 jan 2010.

Desde o dia 16 de janeiro, Osório já possui a UJS – União da Juventude Socialista. A reunião que criou a UJS contou com a presença do Vereador de Cidreira, Matheus Junges (PCdoB), do Presidentes Estadual da UJS, Mateus Fiorentini (Xuxa), do Secretário Adjunto de Juventude, Esporte e Lazer, Binho Silveira e do Presidente do PCdoB Osório, Jessé Leites.

ujs osorio

Jessé, Mateus (Xuxa), Douglas, Matheus Junges, Binho e Vagner
















Na reunião ficaram a acertadas as atividades da UJS para 2010, bem como a campanha Te Liga 16 que vai conscientizar os jovens entre 16 e 18 anos a votarem nas próximas eleições. A direção provisória formada pelos estudantes universitários Douglas e Vagner trabalhará para realizar o Congresso Municipal entre março e abril.

Para o Vereador Matheus, a criação da UJS não é apenas a constituição de um grupo de jovens. “A UJS lutou pela democracia, conseguiu o voto aos 16 anos, dirigi a UNE, a UBES e tem figuras que fazem história, como por exemplo, Aldo Rebelo, Manuela d’Ávila e o Ministro Orlando”.

Já Binho acredita que Osório tem muito a ganhar com a UJS. “Acredito que agora teremos uma juventude aguerrida e corajosa, disposta a contribuir para as lutas do povo de Osório e do Litoral”.

O Presidente Estadual, Mateus (Xuxa), lançou a ideia de todo o Litoral possuir direções da UJS a partir do núcleo criado em Osório. “A UJS precisa estar em todas as 23 cidades da região. A partir de hoje tenho certeza que os bons ventos de Osório soprarão também na renovação da política do Litoral”.

Conheça o Portal Vermelho: http://www.vermelho.org.br/

22 de dezembro de 2009

“Sem forma revolucionaria não há arte revolucionária”


Entrevistas interessantíssimas encontrei no blog de Geneton Moraes Neto (http://colunas.g1.com.br/geneton/), entrevistas que não consegui parar de ler se já começava a lê-las. Hesitei em reproduzir alguma que fosse aqui no blog; mas como realmente fiquei surpreendido com as entrevistas que li, acredito ser uma forma de dividir com os amigos esses textos. Entre vários, resolvi reproduzir esse em especial, que trata do museu do poeta russo Vladimir Maiakóvski.

“O BARCO DO AMOR QUEBROU-SE CONTRA A VIDA COTIDIANA.É INÚTIL PASSAR EM REVISTA AS DORES, OS INFORTÚNIOS E OS ERROS RECÍPROCOS. SEJAM FELIZES”
Postado por Geneton Moraes Neto em 24 de novembro de 2009 às 22:40
Anotação de uma visita ao museu que homenageia um grande poeta em Moscou:

A poucos passos da antiga sede da KGB, a famigerada polícia secreta dos tempos do regime soviético, o forasteiro encontrará, preservado, um discreto monumento à poesia : o quarto onde vivia Vladimir Maiakóvski, autor de versos épicos e geniais. Não existe lugar melhor para celebrar a beleza trágica da vida do maior poeta russo do século vinte.

Tudo
o que quero
é um palmo de terra
ao lado
dos mais pobres
camponeses e obreiros.
Porém
se vocês pensam
que se trata apenas
de copiar
palavras a esmo,
eis aqui,camaradas,
minha pena,
podem
escrever
vocês mesmos !

Uma pequena legião de fãs Maiakóvskinianos desembarca todos os dias neste endereço que vem se tornando cult,em pleno centro de Moscou. Uma placa aponta para um pátio, no início da rua Myatninskaya. O visitante que deixar a calçada rumo ao pátio interno de um prédio desbotado terá uma surpresa. O pátio dá acesso a um dos mais originais, irreverentes e anticonvencionais museus abertos nos últimos anos na Rússia.

Perdidos em disputas monótonas,
buscamos o sentido secreto,
quando um clamor sacode os objetos :
Dai-nos novas formas !”
Não há mais tolos boquiabertos
esperando a palavra do “mestre”.
Dai-nos,camaradas,uma arte nova
— nova —
que arranque a República da escória.

O Museu Maiakóvski abriu suas portas em 1990 – quando o comunismo já agonizava sob os escombros do Museu de Berlim. Virou ponto de peregrinação de fãs de Maiakóvski, principalmente porque foi lá que o poeta morou, entre l9l9 e l930, num quarto modesto onde viria a morrer.
Os quatro andares do prédio onde ficava o quarto de Maiakóvski foram transformados em museu, administrado pelo Estado. Ao contrário do que acontece em museus instalados em casas onde viveram escritores – em geral, marcados pelo tom austero e solene – o Museu Maiakóvski dá asas ao delírio.


Bebe e celebra! Desata
nas veias a primavera !
Coração, bate a combate!
O peito – bronze de guerra.

O Museu quer reproduzir,numa espécie de ”instalação” que poderia ser perfeitamente montada numa dessas bienais de artes plásticas,o que se passava pela ”imaginação em chamas do poeta”. Assim,objetos que pertenceram a Maiakóvski,como manuscritos e até boletins escolares, são expostos de uma maneira que pode confundir visitantes desatentos. É esta exatamente a intenção do Museu : provocar espanto no visitante.
Cadeiras estão suspensas no ar. Uma estante de vidros quebrados parece enterrada no chão. Surrealismo puro. A porta de uma cadeia é a maneira de informar que Maiakóvski ficou preso por nove meses por ter ajudado presos políticos a fugir.Um dossiê policial registra,ainda na primeira década do século,as atividades do subversivo Maiakóvski,na Rússia pré-revolucionária. Bolas azuis jogadas no trajeto dos visitantes são uma citação ao futurismo.

Depois de descobrir o futurismo na Escola de Pintura e Escultura de Moscou, Maiakóvski foi um dos autores de um manifesto que pedia “um tapa na rosto do gosto do público”. Bustos clássicos espalhados pelo chão testemunham a necessidade de estilhaçar velhas formas da criação artística: “Sem forma revolucionaria não há arte revolucionária”. Seis fuzis apontam para o céu.
O poeta chegou a fazer um apelo para ser recrutado pelo Exército. Depois de percorrer os quatro lances da instalação delirante, o visitante chegará ao pequeno quarto de pensão que exibe, na porta, o nome do poeta. O cenário é modesto: um sofá, um baú azul, uma estante de quatro prateleiras, uma foto de Lênin na parede. É tudo despojado e simples, como convém a um poeta que escreveu:


Os versos
para mim
não deram rublos,
nem mobílias
de madeiras caras.
Uma camisa
lavada e clara
e basta -
para mim é tudo.
Ao Comitê Central
do futuro ofuscante,
sobre a malta dos vates
velhacos e falsários,
apresento
em lugar
do registro partidário
todos
os cem tomos
dos meus livros militantes.

Ao lado do quarto de Maiakóvski, o chão foi pintado de amarelo. Há portas vermelhas entreabertas. O visitante que desembarcar neste estranho mas fascinante museu terá como guia um personagem que parece saído de um dos versos do poeta : uma mulher de 74 anos,chamada Maria Leonietvna. Depois de ler um aviso de que o museu estava à procura de ”trabalhadores idosos”,esta ex-professora se apresentou. Contratada,virou especialista em Maiakóvski.
Aos visitantes, ela explicará que durante anos a vizinha KGB, “por razões de segurança”, era contrária à instalação de um Museu no local onde Maiakóvski viveu e morreu. “Desde que Maiakóvski morreu, ninguém voltou a morar no quarto que ele ocupava. Era propriedade do Estado” – dirá a paciente guia. Entusiasmada com a narrativa da odisséia do poeta na Rússia conflagrada das primeiras décadas do século, Maria Leonietvna vai guiando os navegadores entre um e outro cenário do planeta maiakovskiniano instalado no centro de Moscou:
— “Maiakóvski era uma figura contraditória sob todos os aspectos. Rejeitava o amor burguês, mas amou uma mulher de origem burguesa. Temos um ícone de Nossa Senhora no Museu: Maiakóvski era ateu, mas se voltou para a idéia de Deus. Rejeitava o Estado, mas serviu ao Estado. Fez versos e pinturas triunfalistas sobre a Rússia. Stálin vetou Maiakóvski, porque ele tinha escrito um poema dedicado a Lênin. Quando Stálin devolveu Maiakóvski à vida russa, pensou que Maiakóvski escreveria um poema de louvor a ele. Mas Maiakóvski não escreveu” – diz a guia.
Tanto tempo depois, visitantes anônimos percorrem este pequeno território no centro de Moscou. O capítulo final pode ter sido – e foi – trágico. Mas Maiakóvski é lembrado como o poeta vital, épico, rebelde, que celebrava o Comitê Central do Futuro em versos gritados como estes, em que dialoga com o sol:


(…) Vamos, poeta,
cantar,
luzir
no lixo cinza do universo.
Eu verterei o meu sol
e você o seu
com seus versos.
Se o sol se cansa
e a noite lenta
quer ir pra cama,
marmota sonolenta,
eu, de repente,
inflamo a minha flama
e o dia fulge novamente.

Brilhar para sempre,
brilhar como um farol,
brilhar com brilho eterno,
gente é pra brilhar,
que tudo mais vá pro inferno,
este é o meu slogan
e o do sol.

Maiakóvski – que enfiaria um balaço no peito no dia quatorze de abril de 1930, aos trinta e seis anos de idade - produziu em 1926 um poema belíssimo em homenagem a Serguei Iessienin, um poeta e amigo que se matara três dias depois do Natal de 1925. Não se sabe o que é maior ali: se a tragédia de um suicídio consumado (e outro antevisto) ou se a beleza de versos encharcados de dor e esperança. Maiakóvski passou três meses escrevendo os versos de ”A Serguei Iessienin”.
Haroldo de Campos traduziu assim o canto de Maiakóvski ao amigo morto:


Por enquanto
há escória de sobra.
O tempo é escasso-
mãos à obra.
Primeiro
é preciso
transformar a vida,
para cantá-la -
em seguida.
(…) Para o júbilo
o planeta
está imaturo.
É preciso
arrancar alegria ao futuro.
Nesta vida
morrer não é difícil.
O difícil
é a vida e seu ofício.

Iessienin tinha deixado, como despedida, versos belos mas desesperançados – escritos, literalmente, com sangue, num quarto do Hotel Inglaterra, em Leningrado. Depois de cortar os pulsos e escrever os versos finais, Iessienin se enforcou.
A tradução de Augusto de Campos para os versos de Iessienin foi publicada no volume “Maiakóvski/Poemas”, um pequeno tesouro organizado a seis mãos por Boris Schnaiderman e pelos irmãos Campos para a Editora Perspectiva, em São Paulo, em 1983:


Até logo,até logo,companheiro
Guardo-te no meu peito e te asseguro:
O nosso afastamento passageiro
é sinal de um encontro no futuro.
Adeus, amigo, sem mãos nem palavras.
Não faças um sobrolho pensativo.
Se morrer, nesta vida, não é novo,
tampouco há novidade em estar vivo”.

Cinco anos depois, o próprio Maiakóvski se matou. O bilhete de despedida dizia:
“O incidente está encerrado. O barco do amor quebrou-se contra a vida cotidiana. Estou quite com a vida. É inútil passar em revista as dores, os infortúnios e os erros recíprocos. Sejam felizes”.

8 de dezembro de 2009

Reorganizando o itinerário


Exibir mapa ampliado

Enfim, agora só resta confirmar o pouso em Niterói.

Ia de ônibus, aproveitando a viagem para visitar amigos e conhecer lugares, mas ao final de contas vou e volto do Rio num avião.

Tive problemas para comprar a passagem pela internet. Daí fui até o aeroporto, onde acabei comprando a ida e a volta por R$60 a menos que o previsto, e em horários melhores que os previstos.

Assim, parto de Porto Alegre dia 13/12 às 6h30, e chego na capital gaúcha de novo às 22h do dia 21/12.

Contatos, de preferência por email ou SMS.

De resto, saiu um artigo meu no Jornal de Artes de Osório, que contou com a participação do Maico Silveira no processo de composição. Em breve publicaremos os meandros dessa parceria.

Estive com a Taise aqui em Porto Alegre... A saudade da família e da casa é enorme...

Mas tá valendo, tá valendo...

27 de novembro de 2009

Itinerante

Amigos. Esse mês de novembro pouco pude colaborar no blog, e dezembro dificilmente terá uma atualização efetiva. Não que falte assunto, longe disso. Mas esse é mais um daqueles momentos decisivos em que temos que rever prioridades. Em breve saio daqui de casa, do aconchego do lar, e vou com uma mochila nas costas, muitas idéias na cabeça e sem uma câmera na mão, buscar opções para o ano que vem. Por um lado, com muita saudade da Taise e do Miguel; por outro, na expectativa dos amigos a rever e a conhecer. Tentarei, na medida do possível, estar acessando o e-mail e o blog. O telefone ainda não sei se o levarei. Se por acaso houver quem possa me conseguir pouso e carona, agradeço. Abraços...

6 de novembro de 2009

"Quem disse que a literatura não incomoda mais?" (3)

"Caim e Abel", c. 1620, atribuí­do a Simon Vouet e Pietro Novelli. Óleo sobre tela - 198 x 147 cm. Galleria Nazionale d'Arte Antica, Roma.

Feliz vai também caim, já a sonhar com um almoço no campo, entre verduras, fugidios carreirinhos de água e passarinhos a sinfonizar nas ramagens. À mão direita do caminho, além, vê-se uma fila de árvores de bom porte que promete a melhor das sombras e das sestas. Para lá tocou caim o jumento. O sítio parecia ter sido inventado de propósito para refrigério de viajantes fatigados e respectivas bestas de carga. Paralela às árvores havia uma fileira de arbustos tapando o carreiro estreito que subia em direcção ao teso da colina. Aliviado do peso dos alforges, o jumento tinha-se entregado às delícias da erva fresca e de alguma rústica flor tresmalhada, sabores estes que jamais lhe tinham passado pela goela. Caim escolheu tranquilamente a ementa e ali mesmo comeu, sentado no chão, rodeado de inocentes pássaros que debicavam as migalhas, enquanto as recordações dos bons momentos vividos nos braços de lilith voltavam a aquecer-lhe o sangue. Já as pálpebras tinham começado a pesar-lhe quando uma voz juvenil, de rapaz, o fez sobressaltar, Ó pai, chamou o moço, e logo uma outra voz, de adulto de certa idade, perguntou, Que queres tu, isaac, Levamos aqui o fogo e a lenha, mas onde está a vítima para o sacrifício, e o pai respondeu, O senhor há-de prover, o senhor há-de encontrar a vítima para o sacrifício. E continuaram a subir a encosta. Ora, enquanto sobem e não sobem, convém saber como isto começou para comprovar uma vez mais que o senhor não é pessoa em quem se possa confiar.
Há uns três dias, não mais tarde, tinha ele dito a abraão, pai do rapazito que carrega às costas o molho de lenha, Leva contigo o teu único filho, isaac, a quem tanto queres, vai à região do monte mória e oferece-o em sacrifício a mim sobre um dos montes que eu te indicar. O leitor leu bem, o senhor ordenou a abraão que lhe sacrificasse o próprio filho, com a maior simplicidade o fez, como quem pede um copo de água quando tem sede, o que signifi ca que era costume seu, e muito arraigado. O lógico, o natural, o simplesmente humano seria que abraão tivesse mandado o senhor à merda, mas não foi assim. Na manhã seguinte, o desnaturado pai levantou-se cedo para pôr os arreios no burro, preparou a lenha para o fogo do sacrifício e pôs-se a caminho para o lugar que o senhor lhe indicara, levando consigo dois criados e o seu filho isaac. No terceiro dia da viagem, abraão viu ao longe o lugar referido. Disse então aos criados, Fiquem aqui com o burro que eu vou até lá adiante com o menino, para adorarmos o senhor e depois voltamos para junto de vocês. Quer dizer, além de tão filho da puta como o senhor, abraão era um refinado mentiroso, pronto a enganar qualquer um com a sua língua bífida, que, neste caso, segundo o dicionário privado do narrador desta história, significa traiçoeira, pérfida, aleivosa, desleal e outras lindezas semelhantes.
Chegando assim ao lugar de que o senhor lhe tinha falado, abraão construiu um altar e acomodou a lenha por cima dele. Depois atou o filho e colocou-o no altar, deitado sobre a lenha. Acto contínuo, empunhou a faca para sacrificar o pobre rapaz e já se dispunha a cortar-lhe a garganta quando sentiu que alguém lhe segurava o braço, ao mesmo tempo que uma voz gritava, Que vai você fazer, velho malvado, matar o seu próprio filho, queimá-lo, é outra vez a mesma história, começa-se por um cordeiro e acaba-se por assassinar aquele a quem mais se deveria amar, Foi o senhor que o ordenou, foi o senhor que o ordenou, debatia-se abraão, Cale-se, ou quem o mata aqui sou eu, desate já o rapaz, ajoelhe e peça-lhe perdão, Quem é você, Sou caim, sou o anjo que salvou a vida a isaac. Não, não era certo, caim não é nenhum anjo, anjo é este que acabou de pousar com um grande ruído de asas e que começou a declamar como um actor que tivesse ouvido finalmente a sua deixa, Não levantes a mão contra o menino, não lhe faças nenhum mal, pois já vejo que és obediente ao senhor, disposto, por amor dele, a não poupar nem sequer o teu filho único, Chegas tarde, disse caim, se isaac não está morto foi porque eu o impedi.
O anjo fez cara de contrição, Sinto muito ter chegado atrasado, mas a culpa não foi minha, quando vinha para cá surgiu-me um problema mecânico na asa direita, não sincronizava com a esquerda, o resultado foram contínuas mudanças de rumo que me desorientavam, na verdade vi-me em papos-de-aranha para chegar aqui, ainda por cima não me tinham explicado bem qual destes montes era o lugar do sacrifício, se cá cheguei foi por um milagre do senhor, Tarde, disse caim, Vale mais tarde que nunca, respondeu o anjo com prosápia, como se tivesse acabado de enunciar uma verdade primeira, Enganas-te, nunca não é o contrário de tarde, o contrário de tarde é demasiado tarde, respondeu-lhe caim. O anjo resmungou, Mais um racionalista, e, como ainda não tinha terminado a missão de que havia sido encarregado, despejou o resto do recado, Eis o que mandou dizer o senhor, Já que foste capaz de fazer isto e não poupaste o teu próprio filho, juro pelo meu bom nome que te hei-de abençoar e hei-de dar-te uma descendência tão numerosa como as estrelas do céu ou como as areias da praia e eles hão-de tomar posse das cidades dos seus inimigos, e mais, através dos teus descendentes se hão-de sentir abençoados todos os povos do mundo, porque tu obedeceste à minha ordem, palavra do senhor. Estas, para quem não o saiba ou finja ignorá-lo, são as contabilidades duplas do senhor, disse caim, onde uma ganhou, a outra não perdeu, fora isso não compreendo como irão ser abençoados todos os povos do mundo só porque abraão obedeceu a uma ordem estúpida, A isso chamamos nós no céu obediência devida, disse o anjo.
Coxeando da asa direita, com um mau sabor de boca pelo fracasso da sua missão, a celestial criatura foi-se embora, abraão e o filho também já lá vão a caminho do lugar onde os esperam os criados, e agora, enquanto caim ajeita os alforges no lombo do jumento, imaginemos um diálogo entre o frustrado verdugo e a vítima salva in extremis. Perguntou isaac, Pai, que mal te fiz eu para teres querido matar-me, a mim que sou o teu único filho, Mal não me fizeste, isaac, Então por que quiseste cortar-me a garganta como se eu fosse um borrego, perguntou

TRATA-SE de um trecho divulgado pela Folha On-line de Caim, de José Saramago, recém lançado. Segundo informações dadas pelo próprio jornal, o livro questiona a tradição e valores bíblicos ao se por a narrar o período do Antigo Testamento que vai da criação ao dilúvio. Anos depois de publicar o “Evangelho segundo Jesus Cristo” e provocar indignações da ICAR, o prêmio Nobel de Literatura volta a abordar temas bíblicos e declara estar mudando mudar de postura: "As insolências reacionárias da Igreja Católica precisam ser combatidas com a insolência da inteligência viva, do bom senso, da palavra responsável. Não podemos permitir que a verdade seja ofendida todos os dias por supostos representantes de Deus na Terra, os quais, na verdade, só tem interesse no poder", afirmou. Na ocasião da publicação do “Evangelho”, Sousa Lara, na época subsecretário de estado da Cultura de Portugal, considerou o livro ofensivo para as tradições religiosas de seu povo e o fez retirar da lista para o prêmio europeu de Literatura. Eis o que o levou, talvez, a auto exilar-se de Portugal, buscando refúgio (o sossego para seu espírito literário), na ilha espanhola de Lanzarote (NPDiário.com).

Saramago tem dado afirmações um tanto polêmicas sobre a bíblia:
- "A bíblia é um manual de maus costumes, um catálogo de crueldade e do pior da natureza humana"
- "Sem a bíblia, um livro que teve muita influência em nossa cultura e até em nossa maneira de ser, os seres humanos seriam provavelmente melhores", completou.
- O romancista denunciou "um deus cruel, invejoso e insuportável, que existe apenas em nossas mentes", e afirmou que sua obra não causará problemas com a igreja católica "porque os católicos não lêem a bíblia".

Na mesma esteira, o escritor português dirige-se diretamente a Bento XVI: "Que Ratzinger tenha a coragem de invocar Deus para reforçar seu neomedievalismo universal, um Deus que ele jamais viu, com o qual nunca se sentou para tomar um café, mostra apenas o [seu] absoluto cinismo intelectual". Ainda segundo Saramago, a igreja não se importa com o destino das almas e sempre buscou o controle de seus corpos.
A ICAR se manifestou: o porta-voz da Conferência Episcopal Portuguesa, Manuel Marujão, chamou o livro de "operação publicitária": “Um escritor da dimensão de José Saramago deveria tomar um caminho mais sério. Pode fazer críticas, mas entrar em um gênero de ofensas não fica bem a ninguém, e muito menos a um Prêmio Nobel". A questão é determinar onde está esse limite entre a crítica e a ofensa para a ICAR, e qual a sua auto-avaliação quanto às “críticas”.

"Admito que o livro pode irritar os judeus, mas pouco me importa", afirma Saramago, ao supor que sua obra não causará problemas com a Igreja Católica "porque os católicos não lêem a Bíblia". Nesse sentido, manifesta-se também a comunidade judaica: "o mundo judeu não vai se escandalizar com os escritos de Saramago nem de ninguém", e "Saramago desconhece a Bíblia e sua exegese. Faz leituras superficiais da Bíblia", disse o rabino Elieze du Martino, representante da comunidade judaica de Lisboa. Talvez seja essa a melhor reação às provocações de Saramago, de quase indiferença.

A pior – mais exdrúxula – talvez tenha sido a reação no Parlamento Europeu. O deputado da bancada social-democrata Mário David, médico de formação, disse ter vergonha de Saramago e pediu a renúncia pelo escritor de sua cidadania portuguesa: "José Saramago, há uns anos, fez a ameaça de renunciar à cidadania portuguesa. Na altura, pensei quão ignóbil era esta atitude. Hoje, peço-lhe que a concretize... E depressa! Tenho vergonha de o ter como compatriota! Ou julga que, a coberto da liberdade de expressão, se lhe aceitam todas as imbecilidades e impropérios?". Ainda acusando Saramago de ter se deslumbrado com o Nobel, o deputado afirma que esse prêmio "não lhe confere a autoridade para vilipendiar povos e confissões religiosas, valores que certamente desconhece mas que definem as pessoas de bom carácter." Certamente para o nobre deputado, ateus devem ser automaticamente pessoas más. Sobre esse assunto, tem um ótimo vídeo do ateu Dráuzio Varella (médico da Globo), que dispensa qualquer devaneio meu nesse sentido:



SYLVIA COLOMBO faz aqui uma leitura no mínimo convidativa: José Saramago usa Caim para atacar Deus

Aqui, bate-rebate:
"Saramago, já chega" -
blog de Mário David
"Carta aberta ao eurodeputado Mário David" - Helder Sanchez, pelo Movimento ateísta português
"Mário David, já chega" - Blog Costa Rochosa
"Para fechar sobre Saramago" - blog de Mário David

Eis mais um trecho divulgado pela Folha, em que Saramago descreve a criação de Adão e Eva pelo Senhor, o desenvolvimento das "incomodidades do ser", a evolução dos hormônios do homem e da mulher e a geração dos seus filhos.


Quando o Senhor, também conhecido como Deus, se apercebeu de que a Adão e Eva, perfeitos em tudo o que apresentavam à vista, não lhes saía uma palavra da boca nem emitiam ao menos um simples som primário que fosse, teve de ficar irritado consigo mesmo, uma vez que não havia mais ninguém no jardim do Éden a quem pudesse responsabilizar pela gravíssima falta, quando os outros animais, produtos, todos eles, tal como os dois humanos, do faça-se divino, uns por meio de mugidos e rugidos, outros por roncos, chilreios, assobios e cacarejos, desfrutavam já de voz própria. Num acesso de ira, surpreendente em quem tudo poderia ter solucionado com outro rápido fiat, correu para o casal e, um após outro, sem contemplações, sem meias-medidas, enfiou-lhes a língua pela garganta abaixo. Dos escritos em que, ao longo dos tempos, vieram sendo consignados um pouco ao acaso os acontecimentos destas remotas épocas, quer de possível certificação canônica futura ou fruto de imaginações apócrifas e irremediavelmente heréticas, não se aclara a dúvida sobre que língua terá sido aquela, se o músculo flexível e úmido que se mexe e remexe na cavidade bucal e às vezes fora dela, ou a fala, também chamada idioma, de que o Senhor lamentavelmente se havia esquecido e que ignoramos qual fosse, uma vez que dela não ficou o menor vestígio, nem ao menos um coração gravado na casca de uma árvore com uma legenda sentimental, qualquer coisa no gênero amo-te, Eva. Como uma coisa, em princípio, não deveria ir sem a outra, é provável que um outro objetivo do violento empurrão dado pelo Senhor às mudas línguas dos seus rebentos fosse pô-las em contato com os mais profundos interiores do ser corporal, as chamadas incomodidades do ser, para que, no porvir, já com algum conhecimento de causa, pudessem falar da sua escura e labiríntica confusão a cuja janela, a boca, já começavam elas a assomar. Tudo pode ser. Evidentemente, por um escrúpulo de bom artífice que só lhe ficava bem, além de compensar com a devida humildade a anterior negligência, o Senhor quis comprovar que o seu erro havia sido corrigido, e assim perguntou a Adão, Tu, como te chamas, e o homem respondeu, Sou Adão, teu primogênito, Senhor. Depois, o criador virou-se para a mulher, E tu, como te chamas tu, Sou Eva, Senhor, a primeira dama, respondeu ela desnecessariamente, uma vez que não havia outra. Deu-se o Senhor por satisfeito, despediu-se com um paternal Até logo, e foi à sua vida. Então, pela primeira vez, Adão disse para Eva, Vamos para a cama.
Set, o filho terceiro da família, só virá ao mundo cento e trinta anos depois, não porque a gravidez materna precisasse de tanto tempo para rematar a fabricação de um novo descendente, mas porque as gônadas do pai e da mãe, os testículos e o útero respectivamente, haviam tardado mais de um século a amadurecer e a desenvolver suficiente potência generativa. Há que dizer aos apressados que o fiat foi uma vez e nunca mais, que um homem e uma mulher não são máquinas de encher chouriços, os hormônios são coisa muito complicada, não se produzem assim do pé para a mão, não se encontram nas farmácias nem nos supermercados, há que dar tempo ao tempo. Antes de Set tinham vindo ao mundo, com escassa diferença de tempo entre eles, primeiro Caim e depois Abel. O que não pode ser deixado sem imediata referência é o profundo aborrecimento que foram tantos anos sem vizinhos, sem distrações, sem uma criança gatinhando entre a cozinha e o salão, sem outras visitas que as do Senhor, e mesmo essas pouquíssimas e breves, espaçadas por longos períodos de ausência, dez, quinze, vinte, cinquenta anos, imaginamos que pouco haverá faltado para que os solitários ocupantes do paraíso terrestre se vissem a si mesmos como uns pobres órfãos abandonados na floresta do universo, ainda que não tivessem sido capazes de explicar o que fosse isso de órfãos e abandonos. É verdade que dia sim, dia não, e este não com altíssima frequência também sim, Adão dizia a Eva, Vamos para a cama, mas a rotina conjugal, agravada, no caso destes dois, pela nula variedade nas posturas por falta de experiência, já então se demonstrou tão destrutiva como uma invasão de carunchos a roer a trave da casa. Por fora, salvo alguns pozinhos que vão escorrendo aqui e ali de minúsculos orifícios, o atentado mal se percebe, mas lá por dentro a procissão é outra, não tardará muito que venha por aí abaixo o que tão firme havia parecido. Em situações como esta, há quem defenda que o nascimento de um filho pode ter efeitos reanimadores, senão da libido, que é obra de químicas muito mais complexas que aprender a mudar uma fralda, ao menos dos sentimentos, o que, reconheça-se, já não é pequeno ganho. Quanto ao Senhor e às suas esporádicas visitas, a primeira foi para ver se Adão e Eva haviam tido problemas com a instalação doméstica, a segunda para saber se tinham beneficiado alguma coisa da experiência da vida campestre e a terceira para avisar que tão cedo não esperava voltar, pois tinha de fazer a ronda pelos outros paraísos existentes no espaço celeste.

Informações e excertos foram retirados majoritariamente do jornal Folha de S.Paulo.