A prática de ensino de Literatura, tanto na universidade quanto em outros níveis do ensino, tem apontado o nosso distanciamento do objeto livro. The book isn’t else on the table. A facilidade e praticidade das fotocópias ou montagens que contém fragmentos de obras ou textos curtos servem a fins didáticos; mas, se a literatura se faz de livros publicados (e cabe aqui o questionamento), quanto o laboratório de distingue da realidade? Que implicações há em negar o suporte próprio da Literatura no processo de leitura?
Entre essas e outras perguntas, propus em uma aula no Pré-Vestibular Popular Alternativa uma atividade que priorizasse o contato com livros. Afim de esclarecimentos: esse projeto que comemora 10 anos é um dos espaços de inclusão da universidade voltado para a comunidade santa-mariense que não tem condições econômicas de arcar com a preparação para o vestibular. A coordenação do projeto e as aulas são por conta e organização de alunos voluntários das universidades da cidade, com o suporte institucional e financeiro da Pró-Reitoria de Extensão da UFSM. Desde 2004 tenho a oportunidade de trabalhar no Alternativa ministrando aulas, sobretudo de Literatura Brasileira. Depois de uma pausa de dois anos em virtude da dedicação ao mestrado, retornei à sala de aula, inicialmente em parceria com a Profª Priscila do Prado. Para esse ano, delineamos a disciplina privilegiando em um primeiro momento a poesia para, só depois, dedicarmo-nos à prosa.
(As leituras indicadas para a prova de Literatura Brasileira
do vestibular 2010 da UFSM podem ser encontradas aqui) Enfim: em meio às reflexões propiciadas pela abordagem à poesia moderna brasileira, principalmente no questionamento aos limites da “arte” e sua aproximação com a “vida”, propus uma atividade que estimulasse o contato com os livros. Mas, longe de levar autores consagrados em re-re-reedições atualizadas revisitadas remasterizadas, levei-lhes alguns livros de poemas que tinha em casa, de poetas de diferentes gerações e mais ou menos conhecidos em seus sub-sistemas literários.Dei a oportunidade que escolhessem, em duplas ou trios, um livro a julgar pela capa, textura, bitola e título. E assim eles teriam que verificar informações no livro sobre o autor e suas obras, ler alguns poemas e destacar elementos que lhes pudessem chamar atenção. Considerando-se a variável de interesse, a atividade de uma forma geral foi muito satisfatória: mãos manipulavam livros e liam com os dedos, redescobrindo os poemas em uma unidade produtora de sentido, ao lado de outros poemas e de cores e imagens e formatos. * * *
Alguns livros foram mais bem aceitos do que outros. Obviamente destacarei os que tiveram destaque positivo.O poeta que assume uma relação intensa e ambígua com Brasília, Nicolas Behr, teve uma ótima receptividade. Vinde a mim as palavrinhas (2005) é uma compilação de textos publicados mimeografados pelo autor, à margem do mercado editorial, que visualmente destaca-se pelas fontes que remetem às máquinas de escrever. Assim também é Braxília Revisitada (2005), cujos poemas-piada retomam a lírica de Oswald de Andrade, os alunos estimularam-se pela leitura e seus jogos de linguagem e de sentido:
DAS DUAS UMA
ou tiro sai
pela culatra
ou sai
pela nuca
de grão em grão
a galinha
enche o papo
de palavra em palavra de palavra
em palavra de palavra em palavra
de palavra em palavra de palavra
em palavra de palavra em palavra
de palavra em palavra de palavra
este poema enche o saco
(Nicolas Behr, Vinde a mim as palavrinhas)
alô? eu queria falar com
a substituta da assistente da
secretária da coordenadoria
da secretaria da assessoria
da chefia da procuradoria da
defensoria da corregedoria
da ouvidoria da dona mariaque está na portaria.
ah, saiu? não volta mais hoje...
no princípio era a lama
a lama virou cama
a cama virou câmara
onde eles legislam
deitam e rolam
(Nicolas Behr, Braxília revisitada vol.1)
Outro poeta que despertou o interesse dos alunos foi Delalves Costa, a partir de Coisas que faltam em mim (2006) e Considerações pre-maturas & outras ausências (2008). Alunos surpreenderam-se com a informação de que há jovens poetas gaúchos publicando atualmente, o que propiciou um debate acerca das instituições legitimadoras da Literatura. Afinal, cada vez mais temos mais leitores e, por outro lado, mais escritores disputando um lugar ao sol: como professor, formador de opinião, não nego (e nem devo negar) o meu papel como (uma) instância legitimadora. Com essa atividade amplio o conhecimento dos alunos em relação à textos e escritores (até então ignorados pelos alunos), o que me concede estender, pouco a pouco, os limites da Literatura.
Em Coisas que faltam em mim, os sentidos dos poemas estarão em jogo com o próprio formato inusitado do livro: a capa é um envelope, no qual temos as páginas dos poemas soltas, como cartões da sorte para serem lidos aleatóriamente. A unidade e a linearidade do livro faltam, o que dilacera a posição do sujeito-lírico à procura de si, das ausências e do indizível. É preciso portanto descobrir-se e redescobrir a própria poesia no instante ou na temática surpreendente, como acontece também em Considerações Pre-Maturas & Outras Ausências. O cotidiano apresenta a sua poesia pelo olhar do poeta em busca do que lhe é ausente ou indizível:
O TÁXI
E assim... de malas prontas
me olhava como se escrevesse uma carla a la canhoto (ainda que minha, palpitasse!)...
Com o olhar pequeno
à procura de voz
à procura de nós
à procura de fantasmas
para levá-la ao táxi!... De um homem deveras gentil
que lhe abrisse a porta, de um romântico
que lhe desse o beijo!
Enfim!... De última hora à espera de alguém para desfazer suas malas apenas com um "não se vá!"... Mas o táxi sinalizou à direita e logo à esquerda
me levando... me levando...
te levando e se foi!...
(Delalves Costa, Considerações Pre-Maturas & Outras Ausências)
COISAS QUE FALTAM EM MIM
Faltam ruas, sobro em disfarces.
Eu sei. São infindáveis
Os caminhos a seguir.
Mas vou disfarçando sem pressa
Para não sentir em minhas ausências
As coisas que faltam em mim.
(Delalves Costa, Coisas que faltam em mim)
Por fim, destaco ainda
* * *
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