Quero, de coração, agradecer aos amigos que fiz em Niterói nesse um ano que estive por aqui, pela companhia e pelos momentos que estivemos juntos. Vou embora com muita alegria por tê-los conhecido, de mesmo modo que volto feliz pra casa, onde a Taise e o Miguel me esperam. Também agradeço aos demais amigos, que fiz por onde passei, pelas incomensuráveis demonstrações de amizade, sobretudo pela espera silenciosa que é a expectativa em nos reencontrarmos em breve. Às famílias, o meu agradecimento pela confiança e incentivo para que essa fase fosse cumprida. A todos, com certeza, nos veremos em breve, meus amigos!
12 de dezembro de 2011
4 de novembro de 2011
Minha redação enquanto secundarista
Em meio às arrumações da mudança, achei o seguinte diálogo, escrito em alguma aula de português do meu primeiro ano na Escola Rural de Osório.
Apesar dos (poucos) poréns que eu (hoje) teria com o texto, acho-o engraçado ao poder considerá-lo como uma forma de olhar para mim mesmo naquela época da vida, dos meus 15 anos, da ameaça da ALCA, das crises do neoliberalismo que o país sofria...
Hesitei um pouquinho, mas ainda assim resolvi dividi-lo com os amigos!
Além do mais, é com certo carinho que enxergo, entre outras coisas, aquele "ultilíssimo" da terceira página...
11 de setembro de 2011
O terceiro gol de Leandro Damião
Recém havia ligado a imagem do jogo. Já estava acompanhando pelo rádio, imaginando o grande jogo lá e cá entre o Palmeiras e o Internacional. O Inter vencia por dois a zero, em pleno Pacaembu. A torcida palmeirense estava de costas para o gramado no momento em que comecei a ver o jogo. Provavelmente não viram o que eu vi. Eu conversava com os guris aqui em casa, quando vi o Ilsinho, há pouco em campo, lançando a bola para o Damião lá na frente. Quando vi o Damião vencer o zagueiro no corpo, passar pelo Marcos e ainda se permitir a uma gracinha antes do gol, eu comecei a gritar. Gritei enlouquecidamente, freneticamente, até comprometer a voz. Gritei num gozo catártico, como se o esporte bretão tivesse sido criado, e se desenvolvido no Brasil, para esse momento. Como se todo o universo futebolístico tivesse existido para aquele momento. O Inter não teve a melhor de suas apresentações, apesar da vitória por goleada. O Inter ainda está longe dos líderes do campeonato. Mas esse gol... Esse gol!
7 de setembro de 2011
Uma coisa que leva a outra e, por sua vez, a outra, e a outra...
A propósito, inicialmente, do vídeo intitulado EL EMPLEO:
[1]
[2]
[3]
[4]
Na primeira noite, eles se aproximam e colhem uma flor de nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem, pisam as flores, matam nosso cão. E não dizemos nada.
Até que um dia, o mais frágil deles, entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a lua, e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta.
E porque não dissemos nada, já não podemos dizer nada. (Maiakóvski)
[5]
Primeiro levaram os negros
Mas não me importei com isso
Eu não era negro
Em seguida levaram alguns operários
Mas não me importei com isso
Eu também não era operário
Depois prenderam os miseráveis
Mas não me importei com isso
Porque eu não sou miserável
Depois agarraram uns desempregados
Mas como tenho meu emprego
Também não me importei
Agora estão me levando
Mas já é tarde.
Como eu não me importei com ninguém
Ninguém se importa comigo. (Bertold Brecht)
A leitura do conto “O arquivo” [1], de Victor Giudice (indicado pelo André Cruz, realizada no vídeo pelo Antônio Abujamra) me remete (como não poderia deixar de ser) ao "Operário em Construção" [2], de Vinícius de Moraes, que, em contraposição ao protagonista de Giudice, disse NÃO. Baixar a cabeça - calar e, portanto, consentir - também é tema de "Casa tomada", de Cortázar [3] e de poemas de Maiakóvski [4] e de Brecht [5]. Quando a resignação do espírito - do operário - é aproximada das relações de trabalho, evidencia-se a lógica da produção e do capital, nada humanizadora. Assim, dizer não é contrapor-se a essa lógica, seja pela manutenção de direitos conquistados, seja no avanço para a construção de uma sociedade cada vez mais justa e igualitária. E, se a literatura propõe-se a construir universos paralelos a partir de situações hipotéticas, que nos permite uma identificação – embora com certo distanciamento – ao olharmos no espelho, o que percebemos, senão as nossas próprias contradições e as contradições da própria realidade que nos circunda?
[1]
[2]
[3]
[4]
Na primeira noite, eles se aproximam e colhem uma flor de nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem, pisam as flores, matam nosso cão. E não dizemos nada.
Até que um dia, o mais frágil deles, entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a lua, e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta.
E porque não dissemos nada, já não podemos dizer nada. (Maiakóvski)
[5]
Primeiro levaram os negros
Mas não me importei com isso
Eu não era negro
Em seguida levaram alguns operários
Mas não me importei com isso
Eu também não era operário
Depois prenderam os miseráveis
Mas não me importei com isso
Porque eu não sou miserável
Depois agarraram uns desempregados
Mas como tenho meu emprego
Também não me importei
Agora estão me levando
Mas já é tarde.
Como eu não me importei com ninguém
Ninguém se importa comigo. (Bertold Brecht)
21 de agosto de 2011
so happy together
Ao mesmo tempo em que dizia um eu te amo inaudível pelo ruído do motor, ele molhou a ponta do dedinho com cuspe e desenhava alguma coisa para mim do lado de dentro do vidro do ônibus... Somos tão felizes quando estamos juntos, mas sempre soubemos que hora ou outra as nossas escolhas nos arrebatariam... Ela disse que essa última semana passou como se fosse um ano. É verdade. Hoje, estamos, cada um dos três, indo para lados diferentes. Por um lado estou muito triste, mas por outro sei que isso é por pouco tempo. Certa vez, com muita sabedoria, ela me disse que ele é a coisa mais importante para nós, mas não é a única... Hoje sei que, independente nos nossos anseios pessoais, mesmo os de cinco anos atrás, só podem ser pensados enquanto "nossos", ainda que estejamos indo cada um para um lado...
Na certeza de que será por muito pouco tempo.
Logo, logo, nós três juntos novamente.
"E até lá, vamos viver... temos muito ainda por fazer, não olhe pra trás... O mundo começa agora: apenas começamos..."
18 de agosto de 2011
Por enquanto
Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?
(Drummond)
Sabe aquela certa falta de pertencimento a algum lugar? Imagino que seja próprio de uma parcela da juventude da minha geração. Nasci em um lugar, cresci em outro, fui estudar em outro. Sem nunca me sentir propriamente parte de algum desses lugares, mas tendo a casa dos pais como o refúgio, minha mãe não mora mais na cidade onde estudei e conheci os amigos da adolescência. Para tentar ser claro, uso o título eleitoral como exemplo: onde votar para prefeito, para vereadores? Nesse sentido mais específico, há tempos me sinto esse jovem errante, sem rumo certo.
“Se lembra quando a gente chegou um dia a acreditar que tudo era pra sempre, sem saber que ‘pra sempre’ sempre acaba?” Desde os meus dezesseis anos tenho esses versos de Renato Russo cantados por Cássia Eller na minha cabeça. Essa descoberta nos desterra, nos questiona sobre nosso passado e o nosso futuro, sobre quem somos e o que queremos. Há tempos quero sair daqui. Porém, na iminência de mudança, me vem à cabeça o que se deixa para alçar novas oportunidades. “Mesmo com tantos motivos pra deixar como tudo como está... Nem desistir, nem tentar: agora tanto faz. Estamos indo de volta pra casa...” O impasse é que, ao contrário da música, não há mais casa para voltar. Os laços são com a família que, mesmo longe, é sempre o nosso porto seguro; e são com os amigos distantes (ou às vezes, nem tão distantes assim), mas sempre presentes nas comemorações e nas tristezas, ligados pelo telefone, pela internet e pelas rotas de ônibus e avião.
O inquietante é mesmo a desterritorialização. A casa, o terreno, a rua, os vizinhos... Os colegas de jardim de infância, dos primeiros anos de escola... Penso nos meus queridos vizinhos da minha infância na rua Marechal Deodoro; tantos caminhos, quantos descaminhos, alguns tenho amizades sólidas até hoje, mas onde estarão todos? Hesitar em relação às mudanças? Temos esse direito para conosco e para com aqueles que nos importamos e somos importantes? Penso que justo agora (e esse agora não se refere a um tempo específico, mas sempre a esse instante que se reatualiza como uma correnteza) deixaremos isso que nunca nos consideramos parte, até a iminência da mudança. Penso nos trajetos que fazemos todos os dias, as pessoas que encontramos, os vizinhos, os donos da padaria e da loja de utilidades da esquina, as moças do mercado e da farmácia, os rapazes da ferragem, as professoras e as crianças da escolinha, as casas e as calçadas exploradas dia após dia pela criança que descobre o mundo por esses trajetos; penso no chalé em que moramos, nas suas inúmeras qualidades e nos seus poucos problemas, nos amigos que aqui recebemos e que, juntos, tivemos momentos inesquecíveis. E, de uma hora para outra, o turbilhão do futuro nos arremessa daqui. Dizer não, justo depois de tanto nos esforçarmos para conseguirmos?
Mudanças implicam dificuldades na reorganização. Às vezes, o motivo pode ser ruim; não é o caso. A mudança vem por uma novidade muito boa. Mais sorte que juízo, diz ela. Mas sem competência, de nada adiantaria a sorte, digo eu. O momento é dela, o sucesso é dela, com todos os louvores. Estou feliz, sinto orgulho dela. Preocuparmo-nos com as mudanças e as dificuldades, sim; hesitar, jamais. Se vai ser mais fácil ou mais difícil? Os desafios com certeza serão maiores, bem como as responsabilidades. Mas quem já passou pelo que nós passamos – e o que ela passou, com todas as vitórias acumuladas – tiraremos de letra. E em breve na nossa futura moradia, haveremos de receber os amigos que acumulamos por onde passamos. E por onde haveremos ainda de passar.
“Se lembra quando a gente chegou um dia a acreditar que tudo era pra sempre, sem saber que ‘pra sempre’ sempre acaba?” Desde os meus dezesseis anos tenho esses versos de Renato Russo cantados por Cássia Eller na minha cabeça. Essa descoberta nos desterra, nos questiona sobre nosso passado e o nosso futuro, sobre quem somos e o que queremos. Há tempos quero sair daqui. Porém, na iminência de mudança, me vem à cabeça o que se deixa para alçar novas oportunidades. “Mesmo com tantos motivos pra deixar como tudo como está... Nem desistir, nem tentar: agora tanto faz. Estamos indo de volta pra casa...” O impasse é que, ao contrário da música, não há mais casa para voltar. Os laços são com a família que, mesmo longe, é sempre o nosso porto seguro; e são com os amigos distantes (ou às vezes, nem tão distantes assim), mas sempre presentes nas comemorações e nas tristezas, ligados pelo telefone, pela internet e pelas rotas de ônibus e avião.
O inquietante é mesmo a desterritorialização. A casa, o terreno, a rua, os vizinhos... Os colegas de jardim de infância, dos primeiros anos de escola... Penso nos meus queridos vizinhos da minha infância na rua Marechal Deodoro; tantos caminhos, quantos descaminhos, alguns tenho amizades sólidas até hoje, mas onde estarão todos? Hesitar em relação às mudanças? Temos esse direito para conosco e para com aqueles que nos importamos e somos importantes? Penso que justo agora (e esse agora não se refere a um tempo específico, mas sempre a esse instante que se reatualiza como uma correnteza) deixaremos isso que nunca nos consideramos parte, até a iminência da mudança. Penso nos trajetos que fazemos todos os dias, as pessoas que encontramos, os vizinhos, os donos da padaria e da loja de utilidades da esquina, as moças do mercado e da farmácia, os rapazes da ferragem, as professoras e as crianças da escolinha, as casas e as calçadas exploradas dia após dia pela criança que descobre o mundo por esses trajetos; penso no chalé em que moramos, nas suas inúmeras qualidades e nos seus poucos problemas, nos amigos que aqui recebemos e que, juntos, tivemos momentos inesquecíveis. E, de uma hora para outra, o turbilhão do futuro nos arremessa daqui. Dizer não, justo depois de tanto nos esforçarmos para conseguirmos?
Mudanças implicam dificuldades na reorganização. Às vezes, o motivo pode ser ruim; não é o caso. A mudança vem por uma novidade muito boa. Mais sorte que juízo, diz ela. Mas sem competência, de nada adiantaria a sorte, digo eu. O momento é dela, o sucesso é dela, com todos os louvores. Estou feliz, sinto orgulho dela. Preocuparmo-nos com as mudanças e as dificuldades, sim; hesitar, jamais. Se vai ser mais fácil ou mais difícil? Os desafios com certeza serão maiores, bem como as responsabilidades. Mas quem já passou pelo que nós passamos – e o que ela passou, com todas as vitórias acumuladas – tiraremos de letra. E em breve na nossa futura moradia, haveremos de receber os amigos que acumulamos por onde passamos. E por onde haveremos ainda de passar.
Para @taisempelissaro
Diga não em Porto Alegre!
Ainda este mês vocês podem conferir, em Porto Alegre, o espetáculo teatral "O Dia em que Aprendi a Dizer Não", sob atuação do ator e meu amigo Maico Silveira (do blog "Maico sem n"). Pelas palavras do "Casa XV", "o cerne do trabalho consiste em agregar elementos plásticos do trabalho do ator, baseado essencialmente na utilização de técnicas oriundas do mimo corporal e do futebol como estilo livre, a uma temática e estética que reflitam as inquietudes de nossas vidas cotidianas". Ou ainda, conforme a divulgação no Brasília Agenda, é "um espetáculo humorado, irônico e sem concessões às peculiaridades do homem na atualidade, de sua contemporaneidade e de seu embate com os conceitos, preconceitos e dogmas da sociedade". Se estiver pela capital gaúcha, não deixe de comparecer para conferir; ou recomende para quem estiver por lá!
peça: O dia em que aprendi a dizer NÃO
site: http://odiadonao.blogspot.com/
direção: Camila Bauer
atuação: Maico Silveira
texto: Pablo Berned e Maico Silveira
Trilha sonora original: Leonardo Dias
Produção: Colectivo El Sótano [http://colectivoelsotano.blogspot.com/]
local: IAB - Instituto de Arquitetos do Brasil (General Canabarro, 363, esquina com Riachuelo - Centro, Porto Alegre)
horário: TERÇAS, QUARTAS E QUINTAS, 20h.
ingressos: R$ 20 e R$ 10
Somente até 25 de agosto.
site: http://odiadonao.blogspot.com/
direção: Camila Bauer
atuação: Maico Silveira
texto: Pablo Berned e Maico Silveira
Trilha sonora original: Leonardo Dias
Produção: Colectivo El Sótano [http://colectivoelsotano.blogspot.com/]
local: IAB - Instituto de Arquitetos do Brasil (General Canabarro, 363, esquina com Riachuelo - Centro, Porto Alegre)
horário: TERÇAS, QUARTAS E QUINTAS, 20h.
ingressos: R$ 20 e R$ 10
Somente até 25 de agosto.
9 de junho de 2011
Como é possível manter a individualidade num mundo pleno de exigências, convenções e incertezas?
Estreia, neste final de semana em Brasília, o espetáculo teatral "O Dia em que Aprendi a Dizer Não", sob atuação do ator e meu amigo Maico Silveira (do blog "Maico sem n"). Pelas palavras do "Casa XV", "o cerne do trabalho consiste em agregar elementos plásticos do trabalho do ator, baseado essencialmente na utilização de técnicas oriundas do mimo corporal e do futebol como estilo livre, a uma temática e estética que reflitam as inquietudes de nossas vidas cotidianas". Ou ainda, conforme a divulgação no Brasília Agenda, é "um espetáculo humorado, irônico e sem concessões às peculiaridades do homem na atualidade, de sua contemporaneidade e de seu embate com os conceitos, preconceitos e dogmas da sociedade". Se estiver por Brasília, não deixe de comparecer para conferir; ou recomende para quem estiver por lá!
peça: O dia em que aprendi a dizer NÃO
site: http://odiadonao.blogspot.com/
direção: Camila Bauer
atuação: Maico Silveira
texto: Pablo Berned e Maico Silveira
Trilha sonora original: Leonardo Dias
Produção: Colectivo El Sótano [http://colectivoelsotano.blogspot.com/]
local: Espaço Cultural 508 Sul - Sala Parangolé - Brasília - DF
horário: sexta e sábado às 21 e domingo às 20h
ingressos: R$ 20 e R$ 10
site: http://odiadonao.blogspot.com/
direção: Camila Bauer
atuação: Maico Silveira
texto: Pablo Berned e Maico Silveira
Trilha sonora original: Leonardo Dias
Produção: Colectivo El Sótano [http://colectivoelsotano.blogspot.com/]
local: Espaço Cultural 508 Sul - Sala Parangolé - Brasília - DF
horário: sexta e sábado às 21 e domingo às 20h
ingressos: R$ 20 e R$ 10
30 de abril de 2011
"As revistas, as revoltas, as conquistas da juventude são heranças, são motivos pras mudanças de atitude"
Os meios de comunicação no Brasil propõem (ou impõem?) um certo modelo comportamental de jovens, em tese calcado no estereótipo Malhação, talvez por entenderem a juventude como "uma banda numa propaganda de refrigerantes", como canta Humberto Gessinger. O vídeo de Felipe Neto, que você vê aqui, rejuvenesce a discussão sobre os impostos no Brasil, mas por uma perspectiva já caduca, reducionista, limitada, ou seja, mais do mesmo. Embora ele não diga, ficamos com a impressão, ao final do vídeo, que ele poderia muito bem ter tirado a seguinte conclusão: "esse dinheiro que o governo dá pra pobre comer, que oferece para pobre se qualificar e poder mudar de vida, esse dinheiro poderia servir para eu ficar jogando videogame". Estou errado na minha leitura?
Diante disso, a reflexão do Marcelo Parreira é extremamente pertinente. Destaco a seguinte passagem: "O que prejudica a aplicação dos nossos impostos, tanto quanto os desvios que devem ser combatidos, são os problemas estruturais. Nossa legislação tributária consegue ser ao mesmo tempo redundante e falha, nossa fiscalização para evitar a sonegação só começou a melhorar recentemente, setores importantes são bitributados, entre outros problemas. Mesmo assim, a famosa reforma tributária nunca engrenou por um misto de miopia dos governos estaduais, preguiça do governo federal e desinteresse do Legislativo. Isso sim merecia uma revolta e protestos, mas quem quer se arriscar em um assunto complexo como esse quando você pode simplesmente maldizer os políticos e babar pelos cantos?"
http://oopinioso.wordpress.com/2011/04/28/porque-felipe-neto-esta-errado/
Em relação ao texto completo de Parreira, acrescentaria o seguinte ponto:
No começo do vídeo, Felipe Neto já sobe nas tamancas: "Tá na hora de mostrar para essa porra de governo que a gente voltou a ter força para lutar pelo que é justo. Tá na hora de definir de vez que quem manda nessa porra aqui é a gente. Preço justo nessa porra já! Desde a época da ditadura que a juventude brasileira se calou. Toda a porra de dia a gente ouve notícia e mais notícia sobre corrupção, sobre aumento de salário de político, sobre zona com o dinheiro público". Não quero dizer, ao criticá-lo, que não haja problemas no país, mas não podemos cair em reducionismos hipócritas e em equívocos. Só no trecho destacado, poderíamos lembrá-lo do Fora Collor (como se fosse um ato isolado pós-ditadura!) e atualizá-lo sobre o debate importante e necessário sobre a democratização da informação (e sua crítica aos interesses e qualidade das grandes empresas midiáticas).
Não vou me estender sobre a dimensão dos movimentos políticos estudantis no Brasil, sobretudo das forças (em constante embate) que compõem a UNE, a UBES e a ANPG, ou dos movimentos sociais, dos movimentos de jovens trabalhadores, dos centros de cultura, da organização em partidos, ONGs, igrejas... Gostaria de retomar, em relação a esse assunto, o movimento contra a ALCA entre final dos anos 90 e início dos 2000, protagonizado pelos estudantes, e que se baseava exatamente no oposto desse #precojusto, "fácil discursinho pequeno-burguês":
"A possível criação da Alca é motivo de preocupação tanto para os países subdesenvolvidos (a maioria) quanto para os desenvolvidos (Canadá e Estados Unidos). Esse bloco visa estabelecer uma zona de livre comércio no continente americano, onde as tarifas alfandegárias seriam, paulatinamente, eliminadas, proporcionando, assim, a livre circulação de mercadorias, capitais e serviços. Entretanto, a livre circulação de pessoas e trabalhadores entre os países integrantes não seria permitida, pois o idealizador da Alca (EUA) não pretende intensificar a entrada de latino-americanos em seu território."
http://www.brasilescola.com/geografia/alca.htm
Com a ALCA, teríamos o tal cenário em que os produtos importados dos Estados Unidos e do Canadá seriam praticamente livres de imposto sobre importação. Os países “ricos” dominariam o capital industrial, e os “pobres” da América Latina assumiriam de vez o papel de coadjuvantes, restritos à atividade primária (mas com produtos de marca e originais nas prateleiras “livres de impostos”). O grande problema nesse cenário seria a situação do Brasil, e provavelmente da Argentina e do México. Não se trata de fazer suposições evasivas, mas pesquisar o impacto que houve na economia mexicana a partir do NAFTA. Países de industrialização ascendente, sofreríamos (mais) com a procura das empresas estrangeiras pelo “baixo custo”, só que sem barreiras protecionistas que permitissem o fortalecimento da economia nacional. Em miúdos, a América Latina seria uma neocolônia norteamericana, presa pelos limites do Bloco Econômico; ao contrário da cooperação do MERCOSUL, que alavanca a expansão da nossa economia com a Europa, o Oriente Médio, a África, Rússia, China, Japão... O debate não seria sobre o imposto malvado que encarece o DVD do Harry Potter, mas ainda sobre questões de soberania nacional, dívida externa, arrocho salarial, desemprego, futuro... (tipo anos 90?).
-- -- --
E, ainda, sobre o protagonismo ATUAL da juventude, transcrevo um trecho que gosto muito, destacado de uma entrevista da Deputada Manuela D'Ávila (PCdoB/RS):
Sul21 – Tu comentaste há pouco sobre a tua trajetória no movimento estudantil. Como tu avalias o grau de politização do jovem brasileiro em geral, e do movimento estudantil em particular?
Manuela – Em primeiro lugar, eu acho que muitas vezes as pessoas caem no erro de avaliar as coisas sem levar em conta o momento histórico. Comparam os jovens de hoje com os jovens da ditadura militar… O Brasil é diferente, a vida é diferente. Os jovens que combateram a ditadura, como a Dilma (Rousseff, candidata do PT à presidência), lutaram para que a minha geração vivesse em liberdade. Temos que colocar as coisas dentro de seu período histórico. A população jovem hoje é muito maior, numericamente falando. Somos 55 milhões de jovens, e sobre nós incide de maneira mais cruel a desigualdade. Os jovens convivem com as oportunidades geradas pelo governo Lula, mas também com as desigualdades que ainda não superamos. Um cara que estuda consegue acessar a universidade, mas ele precisa trabalhar oito horas para pagar essa universidade. Então, é preciso entender quem é o jovem hoje. E também é preciso entender, na minha opinião, quais são as formas de participação da juventude. O movimento estudantil, hoje, é uma de várias formas de manifestação da juventude, como é o hip hop, como são os jovens universitários desenvolvendo pesquisas, como são os jovens que atuam no movimento de democratização da mídia… Vendo por esse lado, o movimento dos jovens é até maior hoje do que era na ditadura. Também é uma ilusão achar que todos os jovens estavam lutando pela liberdade, na época da ditadura. Acho que há uma tentativa de estereotipar nossa juventude como se ela fosse alienada, e ela não é.
Sul21 – E por que isso?
Manuela - Porque a gente saiu de um processo muito longo de neoliberalismo, que vendia a ideia de que o indivíduo era superior ao coletivo. Para essa visão, é errado divulgar valores coletivos. Uma pessoa tem que encarar seus colegas de aula como adversários, porque eles serão adversários no mercado. A gente ainda vive em um mundo em que se difunde muito os valores individuais. E acreditar na juventude, em sua capacidade de mobilização, equivale a dizer que isso é mentira.
http://sul21.com.br/jornal/2010/10/manuela-%E2%80%9Ctenho-o-sonho-de-ser-prefeita-de-porto-alegre%E2%80%9D/
Post-scriptum: sugestões de leitura
@opinioso - Fazer a diferença (ou Porque Felipe Neto continua errado)
@opinioso - Da arte de se explicar sem se explicar (ou Porque o #preçojusto não pode ser defendido)
@Tsavkko (sugestão do @brizola_neto) - Preço Justo Já e a falta de crítica da classe média #PrecoJusto
2 de abril de 2011
Conjecturas nada estáveis I
"[O materialista histórico] extrai da época uma vida determinada e, da obra composta durante essa vida, uma obra determinada. Seu método resulta em que na obra o conjunto da obra, no conjunto da obra a época e na época a totalidade do processo histórico são preservados e transcendidos" (BENJAMIN, 1987, p.231).
Para que se possa compreender uma determinada época, ao invés de se adotar uma perspectiva “historicista”, de fundamento positivista, convém ser mais adequada uma postura que privilegie as manifestações ideológicas de cada momento histórico, compreendendo as suas oposições, intersecções e contradições. As próprias manifestações ideológicas não são estanques, pois são ressignificadas às variáveis de tempo, espaço, condição socioeconômica, cultural, racial, de gênero, etc.
A soma de tais variáveis é o que permite o exercício do materialista histórico em compreender uma determinada realidade e as perspectivas ideológicas que estejam em jogo. Não esquecendo que ele próprio – o sujeito que se propõe a realizar o exercício de análise – a realiza sob uma perspectiva ideológica, seja consciente ou não, e que essa perspectiva não é harmônica, mas está em tensão com outras perspectivas ideológicas, hegemônicas ou emergentes em determinados campos sociais.
Tenho em vista, por exemplo, que, ao me propor a analisar a dimensão ideológica dos últimos textos de Marguerite Duras, publicados nos anos 90, devo considerar os posicionamentos que a sua escrita carrega – não diretamente, mas possivelmente como palimpsestos – frente a momentos históricos e vivências pessoais, como as políticas do império francês frente à colônia no oriente e o modo como tal circunstância histórica foi compreendida pela escritora a partir da sua vivência na infância, a sua participação na resistência francesa ao nazismo durante a segunda guerra e como essa experiência foi assimilada na sua escrita, bem como o engajamento e a decepção com o PCF, entre outras circunstâncias tematizadas diretamente ou tangencialmente pelo conjunto de sua obra.
Mas também devo ter em vista – embora não esteja entre os objetivos da pesquisa – as circunstâncias que fazem com que um jovem pesquisador em seus vinte e poucos anos, oriundo do sul do Brasil, através de várias experiências pessoais que fazem com que eu me constitua como sujeito de uma época e ao mesmo tempo singular, me interesse pelos textos de Marguerite Duras, e que sentidos são produzidos ao se ressignificar (pelo simples ato de leitura) uma obra produzida em diferentes circunstâncias históricas, geográficas, culturais, etc. Ou seja: devo ter em vista que o próprio discurso sobre outro discurso também traz consigo perspectivas ideológicas, seja em embate ou confluência entre si, ao mesmo tempo em que devo considerar que, inevitavelmente, todo o discurso se funda sob outros discursos.
Palavras-chave:
cultura,
doutorado,
língua,
literatura,
produções culturais,
socialismo
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22 de março de 2011
Sobre a experiência pessoal e profissional em Alegrete
Praça matriz do Alegrete. Na imagem, uma referência de Mário Quintana ao tipo de cidade que (espero) ficará apenas no passado. Tenho otimismo em relação ao Alegrete. |
Semestre passado tive uma incrível experiência ao trabalhar em uma escola pública municipal em Alegrete/RS. Foi uma incrível experiência pois tive a oportunidade de confrontar os meus posicionamentos com determinada realidade escolar, interpretá-la e, na medida do possível, agir sobre ela.
Tive vários momentos que me incitaram à reflexão, embora nem sempre tenham partido de situações positivas. Mas tudo é crescimento e amadurecimento.
Sempre costumo iniciar um debate sendo claro: o problema não é pensarmos diferente. Adoro poder aprender e crescer ao confrontar as minhas ideias com quem pense diferente. Desde que haja coerência e seriedade nos argumentos.
Esse rodeio todo é para narrar uma rápida situação em que me deparei algumas vezes logo que cheguei na cidade. Alguns professores vieram me questionar sobre o que eu estava fazendo "dando aula por lá". Eles comentavam que eu sou jovem, tenho boa formação, etc., e poderia procurar "coisa melhor". Na maioria das vezes eu acenava apenas com um sorriso meio constrangido. Outras eu me sentia mais a vontade para responder o que penso: Tudo bem, eu posso procurar "coisa melhor" (como eles me diziam). Não havia nada que me prendesse por lá, e também já tinha outros planos para mim. Mas, ao mesmo tempo, eu me perguntava e provocava os interlocutores: Se os "bons e jovens professores" (na lógica deles) devem ir embora da cidade, procurar "coisa melhor", quem vai dar aulas para essas crianças?
***
Pensei em terminar o post por aqui, mas convém destacar: conheci ótimos profissionais de educação na rede municipal da cidade, questionadores da própria realidade, abertos para novas ideias e atentos à sua responsabilidade como educadores em incentivar o protagonismo da juventude.
Sim, um outro mundo é possível.
E vocês podem (e devem) ser protagonistas na mudança da realidade, tanto em nível individual quanto da realidade à sua volta.
Espero poder ter passado, de alguma forma, essa mensagem.
Um abraço aos meus ex-alunos da Escola Municipal Lions Clube.
Tive vários momentos que me incitaram à reflexão, embora nem sempre tenham partido de situações positivas. Mas tudo é crescimento e amadurecimento.
Sempre costumo iniciar um debate sendo claro: o problema não é pensarmos diferente. Adoro poder aprender e crescer ao confrontar as minhas ideias com quem pense diferente. Desde que haja coerência e seriedade nos argumentos.
Esse rodeio todo é para narrar uma rápida situação em que me deparei algumas vezes logo que cheguei na cidade. Alguns professores vieram me questionar sobre o que eu estava fazendo "dando aula por lá". Eles comentavam que eu sou jovem, tenho boa formação, etc., e poderia procurar "coisa melhor". Na maioria das vezes eu acenava apenas com um sorriso meio constrangido. Outras eu me sentia mais a vontade para responder o que penso: Tudo bem, eu posso procurar "coisa melhor" (como eles me diziam). Não havia nada que me prendesse por lá, e também já tinha outros planos para mim. Mas, ao mesmo tempo, eu me perguntava e provocava os interlocutores: Se os "bons e jovens professores" (na lógica deles) devem ir embora da cidade, procurar "coisa melhor", quem vai dar aulas para essas crianças?
***
Pensei em terminar o post por aqui, mas convém destacar: conheci ótimos profissionais de educação na rede municipal da cidade, questionadores da própria realidade, abertos para novas ideias e atentos à sua responsabilidade como educadores em incentivar o protagonismo da juventude.
Sim, um outro mundo é possível.
E vocês podem (e devem) ser protagonistas na mudança da realidade, tanto em nível individual quanto da realidade à sua volta.
Espero poder ter passado, de alguma forma, essa mensagem.
Um abraço aos meus ex-alunos da Escola Municipal Lions Clube.
19 de março de 2011
Vale por um poema do Manoel de Barros
Nota: a foto é de um ninho de passarinhos que foi retirado de dentro do suporte de luz que fica na frente de casa. Observa-se que o ninho fora construído com gravetos e folhas secas, mas também com plástico, arame, cabelo... Ah, e apenas retiramos o ninho muito tempo depois de já ter sido abandonado.
14 de março de 2011
Ato 2
Daqui vejo as pessoas lá embaixo, como formiguinhas andando de um lado para outro, sem propósito algum. Ir para onde? Para quê? Qual a finalidade de tudo isso? Poderia descrever qualquer uma daquelas pessoas: há engravatados, mendigos, obesos, carecas... Há algumas pessoas bonitas, outras nem tão apresentáveis... Aonde vão? Eu não sei, talvez pudesse ir junto...
Um carrega flores: será que vai vendê-las? Será que vai levar para a namorada? Ou será que vai a um velório? Daqui não dá para saber, não dá para penetrar na complexidade que é a existência do outro. O que ele me diria? Talvez estivesse tentando mentir para mim enganando a si mesmo. Talvez fosse sincero, mas não fosse convincente. Talvez simplesmente não me dissesse nada.
De onde saíram tantas pessoas? De onde vieram? O que estavam fazendo antes de passarem por aqui? Qual é a religião, a opção sexual, a formação escolar e profissional dessas pessoas? Será que olham TV? Por que veem TV? Será que têm opinião política mais ou menos definida? O que elas querem para si, pro Brasil e pro mundo? Igualdade social, índice de desenvolvimento humano, produto interno bruto, fator previdenciário, créditos de carbono, cotas nas universidades: qual é o caminho? Há apenas um caminho?
Daqui é fácil julgar: construções irregulares em áreas urbanizadas, monocultura no campo, políticas desenvolvimentistas, crítica superficial, debate sobre ética, o politicamente correto, a opressão social à mulher, ao negro, ao homossexual (a tudo o que seja rotulado como diferente, mas que é apenas mais do mesmo). Aborto: quantas moças se arriscam, enquanto eu – impassível – me dou o direito de julgá-las e de condená-las? Isso vai impedi-las de continuarem abortando? Ao mesmo tempo, julgo se o governo deve dar dinheiro para famílias sem fonte de renda ou se não deve dar dinheiro para “vagabundo que só vai querer fazer filho”. Contudo, eu permaneço aqui, na minha janela, com a boca escancarada e cheia de dentes esperando um milagre divino ou o investimento de um bondoso empresário norueguês que resolva todos os problemas que me cercam (ou a morte chegar!).
Cai uma garoa, e mendigos – homens, mulheres; idosos e crianças – se abrigam sob a marquise de uma grande loja. Um policial se dirige a uma mulher com duas crianças em volta e com outra no colo e diz: “Vocês vão ter que sair daí!” Ela diz: “Tudo bem, moço. Mas para onde a gente vai?” Aquelas palavras ecoaram pelo meu coração. Percebo que até o espaço embaixo dos viadutos foi fechado. “Para onde a gente vai?” E se fosse eu no lugar daquela mulher? O que eu faria? Eu poderia fazer alguma coisa? E, não estando no lugar daquela mulher, ainda assim eu posso fazer alguma coisa por ela e pelos seus filhos? Para onde aquela gente vai? Para onde a gente vai? Por algum motivo – seja deus, oxalá, o destino, o estado brasileiro, o yin e o yang, ou a favorável umidade relativa do ar – tive a sorte de nascer em uma determinada família, de determinada condição social, em coordenadas específicas de espaço e de tempo, em condições ideais de temperatura e pressão, que me tornaram apto a aproveitar as oportunidades com a sorte aliada ao esforço para que eu esteja assim, aqui e agora. E como aproveitar essa conjunção de fatores e de variáveis para ajudar as pessoas, de modo que todos possam ter a chance de aproveitar as mesmas oportunidades? Para onde a gente vai? Para onde a gente quer ir? O que é preciso fazer para se chegar a algum lugar?
Um carrega flores: será que vai vendê-las? Será que vai levar para a namorada? Ou será que vai a um velório? Daqui não dá para saber, não dá para penetrar na complexidade que é a existência do outro. O que ele me diria? Talvez estivesse tentando mentir para mim enganando a si mesmo. Talvez fosse sincero, mas não fosse convincente. Talvez simplesmente não me dissesse nada.
De onde saíram tantas pessoas? De onde vieram? O que estavam fazendo antes de passarem por aqui? Qual é a religião, a opção sexual, a formação escolar e profissional dessas pessoas? Será que olham TV? Por que veem TV? Será que têm opinião política mais ou menos definida? O que elas querem para si, pro Brasil e pro mundo? Igualdade social, índice de desenvolvimento humano, produto interno bruto, fator previdenciário, créditos de carbono, cotas nas universidades: qual é o caminho? Há apenas um caminho?
Daqui é fácil julgar: construções irregulares em áreas urbanizadas, monocultura no campo, políticas desenvolvimentistas, crítica superficial, debate sobre ética, o politicamente correto, a opressão social à mulher, ao negro, ao homossexual (a tudo o que seja rotulado como diferente, mas que é apenas mais do mesmo). Aborto: quantas moças se arriscam, enquanto eu – impassível – me dou o direito de julgá-las e de condená-las? Isso vai impedi-las de continuarem abortando? Ao mesmo tempo, julgo se o governo deve dar dinheiro para famílias sem fonte de renda ou se não deve dar dinheiro para “vagabundo que só vai querer fazer filho”. Contudo, eu permaneço aqui, na minha janela, com a boca escancarada e cheia de dentes esperando um milagre divino ou o investimento de um bondoso empresário norueguês que resolva todos os problemas que me cercam (ou a morte chegar!).
Cai uma garoa, e mendigos – homens, mulheres; idosos e crianças – se abrigam sob a marquise de uma grande loja. Um policial se dirige a uma mulher com duas crianças em volta e com outra no colo e diz: “Vocês vão ter que sair daí!” Ela diz: “Tudo bem, moço. Mas para onde a gente vai?” Aquelas palavras ecoaram pelo meu coração. Percebo que até o espaço embaixo dos viadutos foi fechado. “Para onde a gente vai?” E se fosse eu no lugar daquela mulher? O que eu faria? Eu poderia fazer alguma coisa? E, não estando no lugar daquela mulher, ainda assim eu posso fazer alguma coisa por ela e pelos seus filhos? Para onde aquela gente vai? Para onde a gente vai? Por algum motivo – seja deus, oxalá, o destino, o estado brasileiro, o yin e o yang, ou a favorável umidade relativa do ar – tive a sorte de nascer em uma determinada família, de determinada condição social, em coordenadas específicas de espaço e de tempo, em condições ideais de temperatura e pressão, que me tornaram apto a aproveitar as oportunidades com a sorte aliada ao esforço para que eu esteja assim, aqui e agora. E como aproveitar essa conjunção de fatores e de variáveis para ajudar as pessoas, de modo que todos possam ter a chance de aproveitar as mesmas oportunidades? Para onde a gente vai? Para onde a gente quer ir? O que é preciso fazer para se chegar a algum lugar?
24 de janeiro de 2011
Paquera
- Você gostaria de namorar, gata?
- Hummm... depende... Quem?
- Que tal comigo?
- Não.
- Ué, por que não?
- Porque "namorar" é transitivo direto, portanto não admite preposição.
- ?
- A preposição "com", nesse caso, indica companhia. Imagina o verbo "visitar", que também é transitivo direto. Se eu digo que vou visitar a vovozinha com o lobo mau, "vovozinha" é o objeto direto, e lobo mau é um adjunto adverbial que indica quem me acompanha nessa visita.
- ???
- Não faça essa cara de desentendido, seu pervertido! Eu sei qual é o seu plano. Você quer que eu namore alguém com você! Mas eu não me presto para um ménage à trois!
- Gata, não entendi o que tu disse, e acho que há um mal-entendido...
- Mal-entendido nada! Você acha que eu não percebo as coisas? Olha, eu sou estudante de letras! Por enquanto eu estou apenas no mercado informal revisando textos e dando aulas particulares esporádicas, mas em breve eu estarei dando aulas de português. Tá certo, eu preferiria dar aulas de literatura, mas mal vejo perspectiva de vir a ser paga para isso. O professor de literatura parece estar em vias de extinção, assim como o datilógrafo, o relojoeiro, o sapateiro, o alfaiate, o sineiro, o lanterninha ou o fotógrafo lambe-lambe...
- Lambe-lambe?
- Hummm... depende... Quem?
- Que tal comigo?
- Não.
- Ué, por que não?
- Porque "namorar" é transitivo direto, portanto não admite preposição.
- ?
- A preposição "com", nesse caso, indica companhia. Imagina o verbo "visitar", que também é transitivo direto. Se eu digo que vou visitar a vovozinha com o lobo mau, "vovozinha" é o objeto direto, e lobo mau é um adjunto adverbial que indica quem me acompanha nessa visita.
- ???
- Não faça essa cara de desentendido, seu pervertido! Eu sei qual é o seu plano. Você quer que eu namore alguém com você! Mas eu não me presto para um ménage à trois!
- Gata, não entendi o que tu disse, e acho que há um mal-entendido...
- Mal-entendido nada! Você acha que eu não percebo as coisas? Olha, eu sou estudante de letras! Por enquanto eu estou apenas no mercado informal revisando textos e dando aulas particulares esporádicas, mas em breve eu estarei dando aulas de português. Tá certo, eu preferiria dar aulas de literatura, mas mal vejo perspectiva de vir a ser paga para isso. O professor de literatura parece estar em vias de extinção, assim como o datilógrafo, o relojoeiro, o sapateiro, o alfaiate, o sineiro, o lanterninha ou o fotógrafo lambe-lambe...
- Lambe-lambe?
19 de janeiro de 2011
Reescrita e colagem
Ontem, no ônibus, aconteceu algo inusitado: um bichinho subiu na minha mão. Era um desses cascudinhos amarelos que ficam em volta das lâmpadas. Meu primeiro impulso ao sentir seus passos foi mirar e jogá-lo para longe, como se fosse uma bolinha de gude ou coisa parecida. Mas, freei a ação segundos antes de fazê-lo e temi pelo destino do bichinho: estávamos enclausurados em um ônibus, uma caixinha de metal – como outras tantas caixinhas de metal pelas quais as pessoas habituaram-se a se locomover desde o último século – a uns 70 km/h com 46 poltronas, respirando o mesmo ar de outras 45 pessoas, o mesmo ar que saía quente pela ventoinha e retornava frio, diminuindo a umidade do ar e provocando ressecamento das vias aéreas, o que provoca irritação no nariz e na garganta, e proliferando os fungos, ácaros e bactérias por todo o ambiente, como se fossem as argolinhas de um aquaplay. (Ora, quem não se lembra o que é um “aquaplay” que procure na Wikipédia: “Aquaplay é um brinquedo que foi popular na década de 1980. Ele consiste de um pequeno recipiente, em plástico transparente, enchido com água e vedado. Um ou dois botões na base, de acordo com o modelo, acionava um mecanismo, a fim de realizar a tarefa do jogo. As tarefas variavam de acordo com o modelo. Por exemplo, um golfinho que deveria encaixar todas as argolas em um espeto; ou ainda, uma bola de basquetebol que deveria passar dentro da cesta. Este artigo sobre Jogos é um esboço. Você pode ajudar a Wikipédia expandindo-o”). O fato é que estávamos fechados no ônibus, o cascudinho amarelo e eu, seu cúmplice, sem saber como ele tinha entrado ali, e sem saber como ele iria sair. Eu não tinha condições de jogá-lo pela janela, aliviando minha consciência por tê-lo devolvido à natureza, ainda que sabendo que ele estaria no asfalto sujeito a qualquer pneu desavisado. E, se eu o jogasse pelo ônibus, como se fosse uma bolinha de gude ou coisa parecida, ele iria correr sérios riscos de vida, como ser pisado sem querer por alguém que pusesse fim àquela forma de existência. Ou, vir a parar na cabeça de alguém que não tivesse a complacência por um insetinho como ele e o esmagasse. Alguém o esmagaria como tantos que por aí são violentados, esmagados, privados de sua dignidade e condenados ao esquecimento e ao descaso das pessoas. A não ser que apareçam na TV, em algum programa que explore de forma patética o drama de algumas famílias entre comerciais de carros, xampus, sabonetes, sabões em pó, cosméticos, calçados, cursinhos de inglês, bancos, lojas de roupas e programas do próprio canal. Será que somos mais atingidos pelas tragédias e pelos engarrafamentos que aparecem na televisão e pelo câncer dos atores da novela e pelos cantores sertanejos do que pela realidade dos jovens do nosso bairro que procuram nas drogas e na violência uma forma de se verem como seres viventes, já que de outra forma eles não conseguem se fazer ouvidos pelo resto da sociedade? É mais fácil as pessoas ignorarem que há grandes bolsões de pobreza em volta das cidades, discriminarem e criminalizarem as pessoas que não conseguem espaço digno entre as pessoas “ditas de bem”? É bonito dizer que “não se deve dar o peixe, mas ensinar a pescar”: o problema é que, ao mesmo tempo em que se está aprendendo a pescar, a pessoa precisa ter o seu peixe para comer! Isso é um problema deles – lá –, do governo, ou é um problema meu e de responsabilidade minha também? Não há civilização humana que tenha se formado sem religião. E qual a importância e o papel das religiões, senão promover o amor, o respeito e o senso de coletividade? Não quero parecer autossuficiente – pois sei que não sou – mas para ajudar as pessoas, compreender o próximo, moldar o meu caráter e ser uma pessoa razoavelmente boa eu não preciso de religião. Talvez haja quem precise, e eu daria todo o apoio nesse caso. Certa vez eu vi aquelas senhoras que estavam trabalhando na igreja: estavam lá porque realmente têm fé e rezam para que seu deus implacável tenha piedade de nós todos, filhos dele? Ou elas estão fazendo um “sacrifício” indo à missa para acumular bônus que lhas garantam um lugarzinho especial no reino dos céus? Ou, simplesmente, estão seguindo conveniências sociais sem um mínimo de profundidade espiritual? Uma vez li no fórum de uma comunidade do Orkut uma frase de Gandhi onde ele diz que acredita profundamente na verdade de todas as religiões e na importância das mesmas para os povos aos quais foi revelada. Acho isso maravilhoso porque é o princípio da tolerância. Independente da minha espiritualidade, acredito mesmo que todas elas têm um papel fundamental na sociedade. O problema é o que cada homem, cada um de nós faz com elas. Já é batido "refletir" sobre a degradação e perda de valores na "sociedade contemporânea". Mas se eu olho o mundo ao redor e comparo com o passado, eu chego mesmo a essa conclusão? Afinal, afirmações a respeito de "perda" e "degradação" implicam que haja no passado um momento em que esses valores tenham sido respeitados e hoje eles estariam invertidos. Desde quando os valores ocidentais judaico-cristãos que nós assumimos como nossos foram realmente os corretos? E para quem esses valores foram "corretos"? E o suposto respeito a esses bons valores tornava os homens e a sociedade melhor? Será que atribuir essa "inversão" de valores à ascensão do capitalismo não é apenas simplificar as coisas também? Será que hoje não somos apenas menos hipócritas, a partir do momento em que as relações pessoais estão organizadas em torno do acúmulo de dinheiro, essa coisa virtual que se transformou na única medida de valor? E a capacidade de amar dos seres humanos, sua generosidade, inteligência, afeto, doçura, desejo? Tudo isso ficou subordinado ao poder aquisitivo do indivíduo. E não estou nem falando de consumismo, porque isso já é outra coisa. Falo de algo mais básico como sobrevivência. Numa sala de bate-papo, eu conversava com uma amiga eslovaca sobre a experiência comunista do século passado. Ela me escreveu que, para o pai dela, o fracasso do comunismo é o fracasso da humanidade. E ele tem razão. O comunismo parte do princípio de que, se a gente consegue algo, vai dividir com os demais. Mas as pessoas não pensam assim: se a gente consegue algo, aquilo vira posse, é só meu. Dividir o pão ou dar migalhas? Quem realmente divide o pão? Se tiver pouco pega pra si, se tiver muito vende. E, se quer ajudar alguém, digite a tag de uma determinada empresa no tuíter! Se quer se manifestar reivindicando atenção das autoridades, eleger um candidato ou fazer a revolução, promova as tags até aparecerem nos trends topics do tuíter. E depois eu posso continuar levando a minha vida normalmente, pois já exerci a minha cidadania em 140 caracteres, sendo levado pela opinião pública para repetir uma ideia qualquer motivada por pensamentos rápidos e não testados. É um absurdo o aumento do salário dos deputados? É sim, porque tem um monte de gente que passa fome ou que ganha menos. Mas, e se não tivermos o aumento, isso muda? E se colocarmos especificamente esse aumento numa verba específica para a educação, saúde, cultura, transportes, isso vai de fato mudar a realidade? Como eu, daqui do meu cubo de concreto, posso mudar a realidade? Eu posso fazer algo sozinho? Então, como nós mudamos a realidade? Resolvi, portanto, que ia manter o cascudinho amarelo caminhando entre meus dedos. O que não é fácil, porque esse tipo de inseto nunca pára, e é sua mão que precisa movimentar-se para que ele continue, enfim, caminhando em círculos sem saber, até quando eu o deixaria em uma árvore, assim que acabasse aquela viagem. E se eu também sou como aquele insetinho que se deixa levar andando em círculos sem o saber? Acho que me identifico com ele, por isso tenho essa ansiedade em protegê-lo. Cascudinho hipócrita, meu semelhante, meu irmão! Protegê-lo passou a ser meu objetivo naquele instante, e a mulher que se sentou ao meu lado algumas paradas depois deve ter estranhado muito minha relação com meu novo amiginho casca-dura. Era uma ação meio autista: um cara sentado mexendo a mão enquanto um inseto caminha por ela. Mas isso não importava naquele momento, o que importava era o objetivo maior: deixá-lo a salvo quando descesse do ônibus. E foi o que fiz, por mais difícil que fosse se levantar com o ônibus em movimento e segurar-se sem esmagar o bichinho que estava perto da minha palma, ao mesmo tempo em que ia ajeitando minha mochila e pedindo licença à moça aquela que estava do meu lado. Desci, coloquei-o numa árvore. Missão cumprida. Então, enquanto ia para casa, começou a viagem: e se depois de tanto cuidado, ainda sentado no meu lugar no ônibus, eu perdesse o bichinho de vista? Sei lá, se ele entrasse pela manga da minha camiseta, como eu o tiraria de lá sem esmagá-lo, ou o esmagasse por instinto? “Como todo o ser humano”, o cascudinho também precisaria ser protegido e cuidado com respeito e compaixão. Ao invés disso tudo ter acontecido com um cascudinho, isso poderia ter sido com uma joaninha. Seria mais bonitinho, mas também seria mais apelativo. E ninguém tem pena de um simples cascudinho amarelo da luz.
Texto plagiado a pedido, recortado de muitas vozes e colado aqui, com cola bastão.
Agradecimentos especiais a quem quer que tenha colaborado na sua costura, conscientemente ou não.
Texto plagiado a pedido, recortado de muitas vozes e colado aqui, com cola bastão.
Agradecimentos especiais a quem quer que tenha colaborado na sua costura, conscientemente ou não.
13 de janeiro de 2011
igual a um sobre o nourrau II
Ao ler livros – literatura, de comum acordo conceitual – nos deparamos com o produto da tragicidade inerente à atividade de escrever. Ou seja, a atividade de leitura faz com que nos satisfaçamos com o sacrifício de alguém. Fora necessário um ato de amor para conosco – leitores – que alguém se lançou à renúncia da sua própria vida para que vivêssemos e vivenciássemos outras tantas, possíveis e imaginárias.
Não me refiro, embora não pudesse deixar de referi-lo, à tese da morte do autor, de Roland Barthes. Em seu famoso artigo, parece-me que Barthes está interessado em estabelecer diferenciações das categorias de autor e narrador. Neste caso, enfatiza-se o poder demiúrgico daquele que cria não apenas um universo, mas que cria a sua própria voz pela qual um mundo será criado. Ao passo que o narrador pode ser uma testemunha onisciente e onipresente da existência de quaisquer personagens, o autor é um simples humano como nós, fadado ao “legado da sua miséria” (como nos diria d’além-vida o nosso Brás Cubas). O autor morre para dar vazão ao narrador, cuja voz transpassa os limites do tempo e pode chegar até nós. Retomando, portanto, não me oporei aqui à morte barthesiana do autor. Ou antes, focarei as minhas atenções ao sujeito empírico, de carne e osso, relegado pelo seu ímpeto ao apagamento e à morte.
O sujeito escritor, no ato de escrever, isola-se do mundo. Vê-se tomado pela sua própria solidão inerente à existência; no entanto, ao passo que negamos nossa solidão no dia-a-dia, essa solidão essencial que torna nossa experiência de vida única e intransmissível, o escritor vive-a. Ele se joga no abismo do seu próprio vazio, de onde busca marcar, a partir do traço negro no papel, as cicatrizes da sua experiência, de quem viveu a sua própria solidão. A única testemunha dessa entrega do escritor às incertezas do seu próprio abismo é a sua pena: seja o lápis, a caneta, a máquina ou o teclado, cada qual com a sua peculiaridade, ainda são a sua pena. Aquele que escreve, escreve por necessidade: sua pena é a sua pena a ser cumprida, o seu destino inevitável, a sua prisão que haverá de libertá-lo. Então, o escritor sincero explicita, no corpo de seu texto, essa solidão através das interrogações que faz a sua pena. Porém, de um modo geral, à moda de Balzac, o escritor escamoteia a sua solidão e dissimula a sua entrega. O bom contador de histórias, como diriam alguns, é aquele que permite que a história pareça que se conta a si própria, sem marcas e intervenções do narrador. “Pareça”: o fingimento seria fruto da insegurança?
Os poetas são – e continuam sendo, por essa voz que não se apaga – acusados na República por Platão, de serem simples imitadores das aparências da virtude e de quaisquer assuntos sobre os quais versem. Por estar a três graus distantes da Verdade, diz Platão que “o imitador não tem nenhum conhecimento válido do que imita” e, portanto, ao poeta não haveria respaldo para falar sobre coisas das quais não tem domínio. Visto falar de muitas coisas, em nenhuma o poeta teria excelente conhecimento para delas ter propriedade para falar. Dessa forma, os poetas são considerados por Platão apenas como criadores de sombras, presos às ilusões da aparência e muito distantes da essência das coisas, alheios à realidade.
No entanto – e bem sabemos hoje – os textos carregam marcas indissociáveis daquele que os escreve, ainda que seu autor desejasse apagar-se. O escritor renuncia-se a si mesmo no ato da escrita: renuncia à individualidade, dissolve-se no papel em nome da sua própria escrita; o criador doa-se deliberadamente para privilegiar a criatura. O texto torna-se vivo e perene, e abre-se a quem quiser lê-lo, bastando pegá-lo. O autor há de sobreviver através de seus textos, como um pai que sobrevive através dos filhos.
À cabeça me vem a imagem dos cestos de livros: imagem comum, dentre os apaixonados pela literatura, que não se privam de adquiri-los mais e mais, como objetos de um vício. Ao ater-me às tais cestas – e imagino que aconteça com todos os meus confrades – passamo-os um a um, cada livro, em busca ou de algum título ou autor específico, ou nos deixamos conduzir ao reconhecer qualquer coisa que nos familiarize (um cânone, ainda que particular?). Por ora vejo-me como um leitor ingrato para com aqueles que se dedicam à escrita: e os outros livros? Aqueles que não me chamam a atenção? Aqueles dos quais jamais ouvi falar do autor? Que ignoro por completo seu conteúdo? Ou que desprezo pela capa, ou pela editora? Se, por um lado, Mário de Andrade já constatara que “todo autor acredita na valia do que escreve”, pelo outro lado reajo com certa ingratidão. Sim, ingrato sim, pois como leitor, sou seletivo. Sempre. Ainda que eu queira contornar minha ingratidão e me lance à aventura de quaisquer desses livros, ainda não lerei outros. Sou um leitor, o eterno ingrato.
Ao passo que seleciono um título na expectativa do deleite, dou um voto de confiança ao texto e seu autor. Mas, e quanto ao autor, confiará ele no seu leitor? Baudelaire busca a cumplicidade: “Hypocrite lecteur, - mon semblable, - mon frère!” Porém, outros buscarão? Ao considerar a escrita como um gesto de amor e doação de si, o escritor pode buscar reconhecimento em virtude disso. Como aquelas pessoas que se dedicam às causas sociais não por compaixão, mas por autopromoção. Dessa forma, longe de fazer referência ao leitor, como Baudelaire fez, não estaria o sujeito autoral colocando-se em um patamar superior aos outros? Seria portanto a negação da literatura: o querer dizer algo, ou a autopromoção do escritor de carne e osso. Pois a essência da literatura, se se pudesse desvendá-la, seria essa o silêncio. O silêncio absoluto.
Trágico, pois se trata de uma imolação voluntária. Uma doação das próprias palavras, e portanto, da própria vida. O escritor diz desdizendo-se, surge apagando-se, gritando suas memórias do subsolo ao mesmo tempo em que se enterra em sua solidão. Afinal, o que a literatura poderia dizer? Não é ela própria um fim em si mesma? Não é a literatura uma intransitividade inerente a si própria? Seria muita pretensão querer dizer algo, pela lógica de Platão. E talvez se possa reconhecer, nesse ponto, uma das ambições da literatura moderna: ao buscar uma possível realidade por trás das palavras, a literatura volta-se para a própria literatura. Isso não significa fechar os olhos ao redor, ignorar a realidade: mas pode ser uma busca de cumplicidade para com o leitor, um voto de confiança, a partir do momento em que ambos sabem: o silêncio também significa.
Não me refiro, embora não pudesse deixar de referi-lo, à tese da morte do autor, de Roland Barthes. Em seu famoso artigo, parece-me que Barthes está interessado em estabelecer diferenciações das categorias de autor e narrador. Neste caso, enfatiza-se o poder demiúrgico daquele que cria não apenas um universo, mas que cria a sua própria voz pela qual um mundo será criado. Ao passo que o narrador pode ser uma testemunha onisciente e onipresente da existência de quaisquer personagens, o autor é um simples humano como nós, fadado ao “legado da sua miséria” (como nos diria d’além-vida o nosso Brás Cubas). O autor morre para dar vazão ao narrador, cuja voz transpassa os limites do tempo e pode chegar até nós. Retomando, portanto, não me oporei aqui à morte barthesiana do autor. Ou antes, focarei as minhas atenções ao sujeito empírico, de carne e osso, relegado pelo seu ímpeto ao apagamento e à morte.
O sujeito escritor, no ato de escrever, isola-se do mundo. Vê-se tomado pela sua própria solidão inerente à existência; no entanto, ao passo que negamos nossa solidão no dia-a-dia, essa solidão essencial que torna nossa experiência de vida única e intransmissível, o escritor vive-a. Ele se joga no abismo do seu próprio vazio, de onde busca marcar, a partir do traço negro no papel, as cicatrizes da sua experiência, de quem viveu a sua própria solidão. A única testemunha dessa entrega do escritor às incertezas do seu próprio abismo é a sua pena: seja o lápis, a caneta, a máquina ou o teclado, cada qual com a sua peculiaridade, ainda são a sua pena. Aquele que escreve, escreve por necessidade: sua pena é a sua pena a ser cumprida, o seu destino inevitável, a sua prisão que haverá de libertá-lo. Então, o escritor sincero explicita, no corpo de seu texto, essa solidão através das interrogações que faz a sua pena. Porém, de um modo geral, à moda de Balzac, o escritor escamoteia a sua solidão e dissimula a sua entrega. O bom contador de histórias, como diriam alguns, é aquele que permite que a história pareça que se conta a si própria, sem marcas e intervenções do narrador. “Pareça”: o fingimento seria fruto da insegurança?
Os poetas são – e continuam sendo, por essa voz que não se apaga – acusados na República por Platão, de serem simples imitadores das aparências da virtude e de quaisquer assuntos sobre os quais versem. Por estar a três graus distantes da Verdade, diz Platão que “o imitador não tem nenhum conhecimento válido do que imita” e, portanto, ao poeta não haveria respaldo para falar sobre coisas das quais não tem domínio. Visto falar de muitas coisas, em nenhuma o poeta teria excelente conhecimento para delas ter propriedade para falar. Dessa forma, os poetas são considerados por Platão apenas como criadores de sombras, presos às ilusões da aparência e muito distantes da essência das coisas, alheios à realidade.
No entanto – e bem sabemos hoje – os textos carregam marcas indissociáveis daquele que os escreve, ainda que seu autor desejasse apagar-se. O escritor renuncia-se a si mesmo no ato da escrita: renuncia à individualidade, dissolve-se no papel em nome da sua própria escrita; o criador doa-se deliberadamente para privilegiar a criatura. O texto torna-se vivo e perene, e abre-se a quem quiser lê-lo, bastando pegá-lo. O autor há de sobreviver através de seus textos, como um pai que sobrevive através dos filhos.
À cabeça me vem a imagem dos cestos de livros: imagem comum, dentre os apaixonados pela literatura, que não se privam de adquiri-los mais e mais, como objetos de um vício. Ao ater-me às tais cestas – e imagino que aconteça com todos os meus confrades – passamo-os um a um, cada livro, em busca ou de algum título ou autor específico, ou nos deixamos conduzir ao reconhecer qualquer coisa que nos familiarize (um cânone, ainda que particular?). Por ora vejo-me como um leitor ingrato para com aqueles que se dedicam à escrita: e os outros livros? Aqueles que não me chamam a atenção? Aqueles dos quais jamais ouvi falar do autor? Que ignoro por completo seu conteúdo? Ou que desprezo pela capa, ou pela editora? Se, por um lado, Mário de Andrade já constatara que “todo autor acredita na valia do que escreve”, pelo outro lado reajo com certa ingratidão. Sim, ingrato sim, pois como leitor, sou seletivo. Sempre. Ainda que eu queira contornar minha ingratidão e me lance à aventura de quaisquer desses livros, ainda não lerei outros. Sou um leitor, o eterno ingrato.
Ao passo que seleciono um título na expectativa do deleite, dou um voto de confiança ao texto e seu autor. Mas, e quanto ao autor, confiará ele no seu leitor? Baudelaire busca a cumplicidade: “Hypocrite lecteur, - mon semblable, - mon frère!” Porém, outros buscarão? Ao considerar a escrita como um gesto de amor e doação de si, o escritor pode buscar reconhecimento em virtude disso. Como aquelas pessoas que se dedicam às causas sociais não por compaixão, mas por autopromoção. Dessa forma, longe de fazer referência ao leitor, como Baudelaire fez, não estaria o sujeito autoral colocando-se em um patamar superior aos outros? Seria portanto a negação da literatura: o querer dizer algo, ou a autopromoção do escritor de carne e osso. Pois a essência da literatura, se se pudesse desvendá-la, seria essa o silêncio. O silêncio absoluto.
Trágico, pois se trata de uma imolação voluntária. Uma doação das próprias palavras, e portanto, da própria vida. O escritor diz desdizendo-se, surge apagando-se, gritando suas memórias do subsolo ao mesmo tempo em que se enterra em sua solidão. Afinal, o que a literatura poderia dizer? Não é ela própria um fim em si mesma? Não é a literatura uma intransitividade inerente a si própria? Seria muita pretensão querer dizer algo, pela lógica de Platão. E talvez se possa reconhecer, nesse ponto, uma das ambições da literatura moderna: ao buscar uma possível realidade por trás das palavras, a literatura volta-se para a própria literatura. Isso não significa fechar os olhos ao redor, ignorar a realidade: mas pode ser uma busca de cumplicidade para com o leitor, um voto de confiança, a partir do momento em que ambos sabem: o silêncio também significa.
(julho de 2010)
12 de janeiro de 2011
Oportunidades
Ir ou não ir? O calor insuportável de Santa Maria tinha sido interrompido por uma chuva forte ao final da tarde. Deveríamos ir, eu e Miguel, para aquela chuva, brincar na calçada? O primeiro impulso – como “adulto” – é o de não ir. Como assim, sair para tomar banho de chuva? Não que me importe com o que os outros pudessem pensar: de fato, não me importo com isso. Ou melhor, não quero me importar, esforço-me para não me importar com o que os outros pensem de mim, das minhas coisas, do que eu faço ou deixo de fazer. A dúvida em ir não durou mais do que cinco segundos, mas é como se o tempo tivesse parado a fim de que eu pudesse refletir sobre se deveria ir ou não ir. A prudência recomendaria que não fôssemos, se considerarmos todas as recomendações de nossos médicos, noticiários, mães, avós, policiais e benzedeiras. Tomar banho de chuva pode dar um resfriado, talvez até uma tuberculose! Um "resbalo" e uma queda de mau jeito poderiam trazer problemas sérios! Ora, como os seres humanos são frágeis! Já é um milagre a minha existência, se pensarmos em toda a trajetória da carga genética que trago em mim, que constitui o que sou, e que veio dos meus pais e dos meus avós, de Adão e de Eva, dos primórdios da humanidade, dos ancestrais primatas e do primeiro ser vivo: um ser unicelular, com membrana, material genético e um monte de composto orgânico que formava o seu metabolismo. Meu ancestral não morreu – não ao menos antes de passar a carga genética que nos une – nem na Segunda Guerra Mundial, nem na Guerra dos 100 anos, nem durante a Peste Negra ou durante a caça às Bruxas, nem no incêndio de Roma por Nero ou na destruição de Sodoma e Gomorra por Deus, nem foi pisoteado por um mamute, nem comido por um dinossauro ou morrido junto com eles pela queda de um gigante meteoro. Se a minha carga genética sobreviveu às Eras Glaciais e ao Dilúvio, qual o risco em tomar o banho de chuva? O que eu sei é que minha mãe sempre me diz que faz bem à saúde tomar um copo de água todo dia logo após acordar. Mas li, outro dia, na internet, que bom mesmo é tomar uma colher de azeite em jejum. Afinal, devemos tomar água ou azeite ao acordar para manter a boa saúde? Ou não tomar nada e ir logo escovar os dentes? Espreguiçar-se, estalar os dedos, bocejar, coluna ereta, remédios, lentes de contato, sabonete, fio dental, creme para o cabelo, desodorante, xixi, cocô. Cotonetes: usá-los ou não usá-los? Que dilema mortal! Sempre usei cotonetes, mas de uma hora para outra viraram os vilões dos ouvidos. Menos mal que as recentes pesquisas nos Estados Unidos liberaram os ovos! Agora podemos comer ovos todos os dias sem nos preocuparmos com o colesterol! Ou não, já que não há nada mais impreciso, superficial e inconstante do que as pesquisas idiotas recém divulgadas nos EUA, e que são repassadas para nós – pessoas comuns – pelo jornal Hoje e pelas páginas de emails. E então, tomar água ou azeite de cozinha? Pode ser óleo de soja, ou tem que ser de girassol ou de oliva? Não tomar nada? Misturar os dois? Ah, não, água e óleo não se misturam. Uma solução é às segundas, quartas e sextas tomar água ao acordar, e às terças, quintas e sábados tomar óleo: no domingo eu vou dormir até o meio-dia, e não vou me preocupar com isso. Além do mais, tenho que me matricular na natação, na ioga, no pilates, no aikido, no inglês, na academia... Porém, devo procurar a sensação de paz e de felicidade pagando por ela? Conta, boleto, promoção, cheque, cartão de crédito, dívida no banco, cartão telefônico, sedex, empréstimo, parcela a partir de 24 vezes sem juros, imposto de renda, matrícula, taxa disso, taxa daquilo, desconto, pedágio, mensalidade, folheto promocional, propaganda, telemarketing, contracheque, SPC, SERASA, IPTU, IPVA, ICMS, consumismo, imperialismo, anarquismo, nacionalismo, barbarismo, catecismo, futurismo, dadaísmo, capitalismo, eufemismo, bairrismo, provincianismo, chauvinismo: eis a vida do Homo sapiens sapiens moderno, pósmoderno, contemporâneo, de vanguarda, sedentário para agir e para pensar sua vida, constante e chata. Talvez eu caminhe, talvez eu corra. Talvez eu faça aeróbica na frente do computador, através de vídeos do youtube. E para que fazer tudo isso? Todas essas atividades de uma rotina saudável vão me trazer a felicidade? Talvez eu libere adrenalina, que me dará sensação de bem estar. Mas a adrenalina é o mesmo hormônio que as pessoas liberam quando têm a sensação de medo, para estimular a luta ou a fuga. Devo lutar ou fugir? Devo procurar a felicidade no Google e respondendo a todos os emails, scraps e powerpoints repassados ou procurar os meus familiares e os meus amigos para abraçá-los e dizer a eles o quanto eu gosto deles e o quanto eu sinto saudades deles? Eu deveria também era procurar fazer novos amigos, aproveitando a oportunidade de oferecer um sorriso a cada estranho, vendo-o como um amigo em potencial. O que será que passa pela cabeça do outro, daquele vizinho, daquele sujeito que passou por mim na calçada? Como as crianças têm facilidade em fazer novas amizades! É possível ver o outro como um amigo e não como um concorrente, um inimigo ou simplesmente com indiferença? Ainda devo preocupar-me com o que os outros pensam? Quem não vai, quem não se joga, quem não tenta aproveitar essas pequenas oportunidades de buscar a felicidade, faz o quê? Espera o que da vida, tentando julgar os outros da proteção de seu próprio cubo de concreto? Eu e o Miguel tomamos o banho de chuva, e, de mãos dadas, para que ele não caísse, corríamos pela calçada, colocávamos nossas cabeças em baixo da calha com água fria, pulávamos nas poças e éramos tomados por uma sensação de completude. Um momento único entre pai e filho: eu acompanhava e protegia o meu filho, o meu descendente, aquele que carrega os meus genes para além da minha existência, ao mesmo tempo em que partilhávamos daquela alegria na chuva, daquela felicidade, fator importante para que se tenha uma vida saudável e longa. Tomar banho de chuva, dessa forma, converte-se em um ato político, um signo de liberdade e de felicidade.
Vídeo: Letra e voz de Igor de Fato (2011)